“Diário de Um Morto” – CAPÍTULO VIII (O Momento da minha morte e da chegada a Coimbra)

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“Ver a vida a andar para trás”. Todos conhecemos esta expressão e quem já esteve num momento dramático, prestes a morrer, momentos antes de um choque frontal contra outro carro, tem a sensação de ver “a sua vida a andar para trás”, virem-nos à lembrança os principais momentos que nos marcaram, e outros, nem por isso tão marcantes mas que por alguma razão nos aparecem na memória.

Exceptuando o dia de hoje, já por duas vezes tive a sensação de que iria morrer num acidente e a ambos escapei. A primeira vez foi na estrada que liga Penela a Tomar. Ia eu na minha faixa de rodagem, entro numa curva e aparece-me pela frente uma camioneta de transporte de passageiros fora de mão. Felizmente, nem eu nem o camionista estávamos a conduzir muito depressa, e o choque frontal evitou-se por meio metro. Não fiquei chateado, não protestei, apenas agradeci por estar vivo. A segunda que tive a nítida sensação de que iria morrer, foi num acidente de barco à vela na foz do rio Mondego.

 

E de repente sinto uma dor enorme e estou deitado no meio do chão da sala, de costas no chão. Curiosamente, parece que pairo no ar e observo o meu corpo caído. Não sinto nada, nem sequer uma emoção, e a dor já passou. O que me tinha acontecido ainda eu não sabia, e por momentos pensei que estando eu a ver-me, de certeza que a minha mulher tinha encomendado a uma empresa de arquitectura de interiores a colocação de um espelho enorme no teto da sala. Por outro lado, tal artefacto não faz o género da minha mulher, nem sequer ela mandaria aplicar tal coisa sem me consultar, isto é, na maioria das vezes pede a minha opinião.

 

Sinto-me a pairar no ar, a flutuar, mas o corpo permanece estatelado no chão e, aí começo a acreditar que algo de grave me aconteceu, a acreditar que morri. “Se estar morto é o contrário de estar vivo”, como diria uma conhecida figura do Jet Set nacional, vivo não me sinto. Na altura fiquei na dúvida e achei que o melhor seria aguardar que alguém chegasse a casa para confirmar.

 

Um dia o meu pai aproveitou uma oportunidade de ir para Coimbra trabalhar, e com ele foi a família inteira. Claro que o impacto de trocar o tal bairro de estivadores e a Maia pelo bairro da Solum é imenso, um verdadeiro choque cultural.

 

E foi com a minha chegada, e por influência da minha mãe, que passei ao lado de uma brilhante carreira de “serial killer”. Como devem imaginar, chegar uma criança com acentuado sotaque do norte junto de outras da zona centro, é transformar-se logo em alvo de grande chacota. E chamarem-me tripeiro não caía muito bem, tanto mais que no norte de Portugal, no norte litoral, ninguém chama tripeiro a ninguém, e nem sabem o que é isso. Adjectivam com muito mais propriedade e com capacidade de fazer corar trolha de Coimbra. E aquela sensação de me sentir na pele do “Muletas” era bastante desagradável.

 

Mas a santa da minha mãe convenceu-me de que era inoportuno matar todos os meninos que me chamassem tripeiro, o que eu lamentei, mas que acatei com receio de ficar sem semanada. Com o tempo, o sotaque foi-se perdendo, e perdeu-se de tal forma que, passados uns anos, era eu que chamava tripeiros a todos aqueles que falavam com sotaque do norte litoral.

 

É curioso, as crianças são terríveis no que se refere a discriminações. Se forem gordas, com deficiência física ou mental, baixas, com sotaque, são logo vítimas das outras crianças, alvo de gozo e pancada. E num país de brancos, as crianças negras ou chinesas são postas de lado pelas restantes, apenas porque têm uma cor diferente. Claro que com o tempo, com os ensinamentos e com o civismo acabam por se tornar boas cidadãs, mas leva o seu tempo, e às vezes, nem sempre se obtém o resultado desejado.

 

A minha pré-adolescência foi pouco entusiasmante, nada de relevante se passou a não ser ter sido de novo atropelado. Desta vez e com muito mais experiência, aproveitei para ser atropelado numa passadeira, facto que causou sérios embaraços ao atropelador, que devido à minha traquinice de atravessar as ruas, lamentava-se que ia mais uma vez chegar atrasado ao local de trabalho. Só que este era pobre e a pancada foi leve e, ainda apanhei uma descompostura do autor, pois na opinião dele, e como eu era pequenito e difícil de ver, não tinha nada que andar a atravessar ruas, mesmo que fosse numa passadeira. Para além de mais, ainda teceu uma quantidade de considerações infames sobre os meus pais e a educação que me estavam a dar. E eu fugi novamente! Tenho essa mania de, quando sou atropelado, fugir do local do crime.

 

Tornei-me num ser apagado, que passava ao lado de tudo, mas de vez em quando fazia uma ou outra patifaria, para meu deleite. Quando era apanhado, a minha mãe tinha como hábito, para me castigar, fechar-me na despensa. E tudo corria bem até ao momento em que ela deu conta que as bolachas desapareciam, estranhamente, e que eu estava cada vez mais gordinho. Claro que eu fechado no cubículo, tinha que me entreter com qualquer coisa e devorava afincadamente bolachas e salsichas para matar o tempo até ser libertado. Porém, devo ter exagerado um bocado e passaram a fechar-me na casa de banho e os sabonetes e o papel higiénico não possuem grande sabor.

 

Nunca tive jeito nenhum para a música, e quando vim para Coimbra, frequentei inicialmente a escola pública que ainda existe na Solum e depois passei para o Conservatório Regional. A minha mãe sabe tocar piano e lá achou que eu aprender a tocar um instrumento seria algo precioso na minha vida; no entanto, nunca aprendia a tocar nada, nem sequer viola, ganhei asco à música e passados poucos meses, a minha mãe foi chamada ao Conservatório, porque segundo as senhoras professoras, eu tinha dificuldades de aprendizagem, um verdadeiro estúpido. Claro que a minha mãe ficou ofendida e retirou-me desse estabelecimento de ensino, e o único que me aceitou foi o Colégio São Luiz Gonzaga; no entanto, como clandestino.

 

Ao que parece, o colégio estava sobrelotado, no entanto, não queriam desperdiçar qualquer fonte de rendimento. De maneira que o esquema funcionava da seguinte maneira: sempre que os inspectores das escolas apareciam, eu era logo encaminhado para um esconderijo e nem podia gritar, nem falar, nem sequer tossir. Ficava escondido um bom par de horas na companhia de alguns livros e de um copo de água. A sensação de ser clandestino, de estar a fazer algo de errado, de ser procurado pelas autoridades agradava-me. Ser bandido não estava fora dos meus horizontes de vida. Nessa altura, ter uma profissão decente com um horário estabelecido não me passava pela cabeça. Já tinha manifestado mais que uma vez que, quando fosse grande, seria ou dono de um banco, ou então, senhorio, ter casas e terrenos arrendados e apenas erguer o rabo do sofá para ir receber a prestação mensal.

 

Ainda fascinado com o meu passado, enveredei por uma carreira no crime não organizado porque a minha semanada era muito reduzida. Era completamente viciado em colecções de cromos, não interessava de quais desde que fossem cromos. Na escola fazia as trocas de cromos, fossem de pilotos de Fórmula Um, jogadores de futebol ou de hóquei em patins, tudo servia para amealhar. E como não tinha grande dinheiro disponível, roubava da carteira da minha mãe bastantes moedas para o sustento diário do meu vício. E quando ia brincar para casa dos amiguinhos, roubava-lhes os cromos. Havia um amigo da altura que era a maior vítima, mas os pais eram gente compreensiva, com olho para o negócio, e que entendiam perfeitamente o quanto era importante um garoto ter milhares e milhares de cromos. E eu roubava-lhe os cromos, dezenas de cromos em cada dia, até que um dia as irmãs mais velhas resolveram fazer-me uma inspecção à saída de casa, e nunca mais fui convidado para lá ir brincar. Porém, e ao contrário de muita criança, nunca roubei nada numa loja.

 

Apesar de não ter qualquer vocação musical, não desdenhava a ideia de ser “Zé Pereira” porque os tambores sempre me fascinaram. E quando cheguei a Coimbra, os meus pais, em dia de azar, compraram-me um pequeno tambor depois de muita insistência minha. Às oito horas da manhã, hora a que eu acordava inclusivamente aos fins-de-semana, pegava no tambor e começava a rufar para grande sobressalto da minha família e da vizinhança.

 

O meu irmão, nessa altura com três anos começava a chorar, o meu pai, ainda na cama, dizia mal da vida dele e ao mesmo tempo ameaçava-me se eu continuasse a cultivar a arte de rufar. Era sempre assim, a rotina era sempre igual; o meu pai levantava-se da cama para concretizar as ameaças e eu fugia à frente dele, mas sempre a rufar no tambor. Acabava sempre por ser apanhado, o tambor era-me confiscado, e eu ia para a sala ver televisão enquanto esperava que o tambor me fosse devolvido.

 

Afinal, era um adereço muito importante nessa fase da minha vida, e tão importante o era que nem saía de casa sem ele. Um dia, a minha mãe foi à Baixa de Coimbra fazer compras e eu levei o tambor, fui a rufar dentro do autocarro para grande incómodo geral, e nas ruas da Baixa ia eu à frente a abrir o cortejo, e a minha mãe atrás a tentar passar despercebida e a fingir que não me conhecia. E no dia seguinte o tambor desapareceu para sempre.

 

Eu vou-vos dar um conselho: se quiserem chatear um casal com um filho pequeno, ofereçam um tambor ao miúdo. Mas se acharem que o castigo é demasiado brando, ofereçam um pequeno carro de transporte de brinquedos, preferencialmente em madeira na certeza de que esse vosso casal amigo irá ficar com os móveis e as paredes todos riscados.

 

Houve uma fase importante da minha vida que aconteceu quando eu tinha uns sete ou oito anos: o meu irmão despertou para a vida! De ser abjecto e pouco interessante nos primeiros tempos, que chorava e se borrava de forma permanente, passou a ser pessoa, com vontades firmes, e os meus pais chamaram-me a partilhar o esforço familiar na sua educação e a incutir-lhe também alguns princípios básicos de responsabilidade. Porém, a criatura, assim que despertou para a vida, inicialmente era um verdadeiro selvagem, ganhou graciosidade no insulto a quem passava na rua e constantemente entrava em zaragatas com outras crianças, algumas mais velhas do que eu. Aquilo mais que um garoto, era uma espécie de diabrete loiro, muito loiro, de cabelo quase branco.

 

Educá-lo deu-me muito trabalho, o processo durou longos anos, mas valeu a pena. A minha função de Big Brother quase se ia arruinando mas acabou por ser recompensada. O que mais me chateava era ter que partilhar o quarto, o meu quarto, ter camas iguais, e não se atemorizar com as histórias de terror que eu lhe contava antes de adormecer. A minha responsabilidade consistia em protegê-lo nas brigas, levá-lo e trazê-lo do colégio que ambos frequentávamos, sair com ele para a rua brincar, e de vez em quando, e com maior arcaboiço, dar-lhe uns tabefes.

 

Mas detestava o fascínio da minha mãe em nos vestir de igual. Nunca percebi essa mania dos pais vestirem os filhos de igual pois é deprimente, principalmente para o filho mais velho. “Tão giros e vestidinhos de igual” era uma frase que me dava vontade de esganar o autor, e alguns, mais atrevidos, e pelo facto de sermos loiros, acrescentavam que até parecíamos ingleses.

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