Opinião – Livro “Diário de Um Morto” (Capítulo IX – A minha educação católica)

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Era um tempo que vivia em liberdade mas desconhecia que não a tinha, um tempo em que olhava para Américo Thomaz pendurado de um lado e uma cruz com um Jesus Cristo pendurado no outro, e isso não me causava grandes afrontamentos. Era mesmo assim, era lei e não me ditava qualquer dúvida. Hoje em dia, o retrato do Presidente da República ou de um crucifixo na sala de aula simbolizando o poder e a religião predominante são motivo de celeuma, quase de insulto, e nem percebo porquê.

 

Há muita gente por aí a quem a religião católica faz confusão. A muitos, qualquer tipo de religião faz confusão, como se a possibilidade de acreditar que existe vida para além da morte, ou que existe um ser Criador que teve pachorra para criar o mundo, fosse uma aberração. Estão no direito deles, mas parece-me que para muitos radicais ateus, só o facto de alguém mencionar a possibilidade da existência de Deus é um crime sagrado. É que ninguém sabe se existe Deus ou não, e a razão volta a ser muito flexível como se a existência ou não de Deus fosse uma decisão dos homens. Eu acredito na existência de Deus. Não tenho alguma prova material a não ser o facto de ter estado vivo, mas nem é preciso uma prova material, basta que seja estatística. Se quiserem esta reflexão de que o infinito existe em todas as dimensões: antes do início havia sempre qualquer coisa, há sempre algo mais longe do aquilo que a nossa imaginação permite, existem velocidades para ultrapassar, a capacidade de provocar a vida em actos de entrega, o sorriso, as emoções e os sentimentos, a aprendizagem sempre a evoluir, isso é Deus a funcionar. Para mim Deus é o estar para além de tudo, é o infinito, é o Grande Arquitecto, é aquilo que nós imaginamos que seja. É um Deus à medida de cada um de nós.

 

Por pura preguiça, afirmava, enquanto era vivo, que era Católico Apostólico Romano. E ,no fundo, sempre o fui, tanto mais que não me revejo noutro tipo de religião. Normalmente, e para os ateus, é quase um crime dizer-se que se é católico, acusam-nos de grandes barbáries pelo mundo inteiro. Na minha óptica, o cristianismo soube sempre adaptar-se aos tempos e isso é chave do seu sucesso. Conquistou quando tinha que conquistar, defendeu-se quando tinha que se defender, e no seu seio, no seio da civilização cristã, desenvolveram-se conceitos de liberdade como o próprio ateísmo, aprofundou-se a democracia, a noção de direitos, verificaram-se Reformas, Contra Reformas e Concílios, e nesses golpes e contra golpes, a civilização católica evolui, e evolui mais do que qualquer outra civilização. Conseguiu estimar o conceito, ao contrário de outras religiões, que Deus não é fratricida e que perdoa mais do que castiga. Nem sempre o praticou, é certo, mas estimava imenso o conceito de paz nem que andássemos todos em grande pancadaria.

 

Por exemplo, na religião muçulmana, um fulano que morra a matar infiéis, e que apesar de matar muito é considerado um mártir, chega ao Paraíso e tem logo direito a setenta colegiais virgens. Assim à primeira vista, até parece ser algo interessante. Mas será mesmo? Um tipo chega meio combalido e confuso ao Paraíso e de repente tem que aviar setenta mulheres sem experiência sexual alguma. Ou no Paraíso existe uma farmácia onde se venda Viagra, ou então, o fulano de certeza vai fazer má figura. É um conceito interessante esse dos muçulmanos radicais, e escrevo apenas dos muçulmanos radicais. Na Terra escravizam-se as mulheres, mutilam-se, não se lhes é possibilitado o estudo, mas no Paraíso é uma espécie de casa de alterne, só que em versão casta e a estrear.

 

Portanto, e no mesmo conceito, quando uma mártir, uma mulher bomba morrer na sua actividade de matar infiéis, e pelos mesmos direitos, deverá ter setenta jovens imberbes à sua espera.

 

Eu não estou a dizer que sejam maus na óptica do mártir ou da mártir, mas deve ser muito aborrecido para os jovens e para as virgens.

 

Eu não tive grande educação cristã, mas sabe-se lá porquê, os meus pais resolveram colocar-me na catequese. No fundo era uma forma de se livrarem de mim durante umas horas como mais tarde comecei a compreender. Claro que existia um processo negocial, e o prémio de eu ir à catequese era no dia seguinte ir ao cinema, ou então, conduzir o carro do meu pai. O meu pai sentava-me ao colo dele e eu conduzia apenas o carro com o volante, muito devagar. Eu acho que o meu pai também se divertia imenso com esta brincadeira dominical e era uma forma de estabelecermos cumplicidades e pontos de contacto.

 

Um dia os meus pais descobriram que apesar de me deixarem na catequese, eu deixava o carro seguir e nem sequer lá punha os pés, preferindo ficar a jogar futebol com mais seis ou sete garotos que seguiam o mesmo estratagema. É certo que foi um atrevimento a minha mãe ter interpolado a catequista pelo facto de eu já lá andar há imenso tempo e ainda não tinha feito a primeira Comunhão, e foi uma falsidade a catequista ter dito que nem sequer me conhecia. Claro que me conhecia, mas não era da catequese. E foi assim e nesse momento, com a minha mãe a sentir-se enganada, que acabou a minha educação cristã. E tudo o que sei a partir daí, foram conhecimentos adquiridos de forma empírica e à base dos testemunhos de terceiros.

 

A minha pré-adolescência acaba assim, em pleno vinte cinco de Abril de 1974.

 

Talvez não saibam, é claro que não sabem, que a alma não consegue falar mas sabe ouvir, não tem o sentido do tacto mas possui visão, e essencialmente, uma enorme vantagem, consegue deslocar-se num pequeno raio de acção, e nós, almas, somos muito discretas, com algumas excepções, é claro. E também não conseguimos estar em todo o lado ao mesmo tempo, de maneira que permaneci por ali às voltas pelo meu corpo. Estou quase com cinquenta anos mas não pareço, não tenho barriga, pena estar a ficar careca. Até na morte temos que ser vaidosos e estarmos preparados para um concurso de Mister Morto. É curioso como apesar de mortos, não nos conseguimos desligar do corpo, que apesar de deixar de ser uma parte integrante da nossa pessoa, continua, achamos nós, nossa propriedade.

 

De repente bate a porta de entrada, mas pela forma de bater, sem o barulho de uma chave ter entrado na fechadura, só podia ser alguém a sair de casa. Então, eu estava acompanhado no momento da minha morte, pelo menos estaria alguém dentro de casa, e se estou morto, existe a forte probabilidade de alguém me ter assassinado. E vai ser isso que vou tentar descobrir nos próximos tempos. Será que morri de forma natural, de doença súbita, de morte macaca ou fui assassinado? É um tema interessante. De qualquer maneira, só desejo que a minha morte não tenha sido estúpida.

 

No mundo existem centenas de milhares de pessoas a morrer diariamente de forma estúpida. As mortes mais estúpidas de todas são provocadas pela fome, pela guerra, pela doença trivial. Gente que morre a defender uma causa que não é a deles, gente que morre porque não foram vacinados ou desconhecia os cuidados primários de higiene, gente que morre porque não tem um pouco de pão para se alimentar, e morrem quase sempre nos mesmos locais, nos mesmos países, cujos governos assassinos estão mais preocupados em manter o poder nem que seja à custa da guerra e da fome, do que a criar condições de desenvolvimento para esse povo que vive na miséria.

 

Não gostaria de ter morrido de “doença prolongada”, e só quem já acompanhou uma situação destas é que sabe a dor que nos invade dia após dia até ao momento final. O ver definhar a todo o momento alguém que muito estimamos, e a dado momento, desejar-lhe a morte porque apenas está em sofrimento e isso não é vida com dignidade.

 

O meu sogro deve ter sido das pessoas mais inteligentes, mais humanas e cultas que um dia conheci. Um dia chegou a casa, vindo de tomar conhecimento do resultado de uns exames, e exclamou com lágrimas nos olhos:

  • É um cancro e é dos piores.

 

E a seguir refugiu-se no quarto. E efectivamente era mesmo um cancro dos piores que existem. E durou a agonia seis meses, ou melhor, apenas três meses, porque os primeiros, ainda conseguiu usufruí-los com alguma e relativa qualidade de vida. Foram esses os meses em que ele, de novo, despertou para a alegria de um dia cheio de sol, e passou a valorizar cada vez mais os pequenos pormenores e isso deixava-o imensamente feliz. Meses estranhos mas alegres.

 

Era magistrado, e nessa classe profissional, os colegas tratam-se todos por “doutor”. E sendo uma pessoa muito acarinhada pelos seus pares, um dia recebeu um telefonema de um colega, que se justificava de ainda não o ter ido visitar, ao que o meu sogro, com o bom humor que o caracterizava, respondeu da seguinte forma:

  • Doutor, não se preocupe que há tempo para cá vir, tanto mais que a doença é prolongada.

 

Nestes casos, a única vantagem da doença prolongada é mesmo a de termos tempo de despedirmo-nos de quem gostamos, e organizarmos com tempo a nossa morte.

Só quem não acompanha o definhar de um ente querido, de um amigo, é que não compreende a eutanásia. O prolongar da vida pelo prolongar, com o único objectivo de trabalhar para índices e estatísticas, às vezes é torturar quem, afinal, já não está nesta vida. É o desespero de salvar aquilo que já não pode ser salvo, é a continuação da agonia, é remar em falso contra a maré, o fim da expressão de que enquanto há vida, há esperança. Mas que vida é essa sem dignidade e apenas sofrimento atroz? Que esperança é essa que não almeja coisa alguma para além do adiar a morte, continuando a pessoa em causa moribunda? Prolonga-se, prolonga-se e no final, em tom de consolo diz-se que foi o melhor para todos.

 

 

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