“Diário de Um Morto” – Capítulo X – Teoria Geral do Suicídio

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Nunca ouviram de mim uma palavra de reprovação acerca de quem praticou suicídio. Penso até que escolher o momento, o modo e o motivo para se morrer, é “the state of the art” da morte. Porque não? É o domínio da mente sobre o corpo, algo que me merece alguma consideração embora não sendo praticante, mas é condenado pelas tradições e conceitos judaico-cristãos.

Tive amigos que se suicidaram de forma fabulosa, um deles, electricista de profissão, inventou até um mecanismo espectacular: resolveu suicidar-se recorrendo aos conhecimentos empíricos adquiridos, e a uma pequena formação num centro de competências. Esse meu amigo, não sabendo a falta que me fazia, a mim e a tantas outras pessoas, resolveu enrolar uma quantidade de fios condutores de electricidade à volta do corpo. Depois, conectou os fios todos a um pequeno despertador, daqueles que são ligados à corrente eléctrica e que possuem rádio. Deitou-se na cama, e programou a hora da sua morte no despertador. Às oito horas da manhã, o despertador tocou e ele sofreu uma descarga eléctrica fatal.

Na altura eu e ele éramos muito novos, demasiadamente novos para morrermos, e marcou-me profundamente o suicídio deste meu grande amigo.

Normalmente, os meus amigos que se suicidam fazem-no de forma barata e de forma a causar o maior impacto possível. Para tanto, basta atirarem-se de uma varanda ou de uma janela para o meio da rua. A técnica não funciona para o pessoal que viva no rés-do-chão ou no primeiro andar de um prédio, mas com um bocado de esforço lá encontraram um bom local, suficientemente alto, para se matarem. Só que até os suicidas são lamechas, e preferem matar-se junto do conforto do lar.

A primeira vez que contactei com um morto, neste caso uma morta, foi também um caso de suicídio. Era eu muito novo, talvez tivesse uns doze anos, e foi por uma questão de dois metros ou dois segundos que a morta também não me matou. Foi uma sorte brutal. Estava eu a passar junto ao um prédio quando de repente, e atrás de mim, algo, e com muito estrondo, cai em cima de um automóvel que estava estacionado. No início nem percebi o que se estava a passar, apesar de ver estar a ver o corpo meio desfeito em cima da viatura. Logo se aproximou uma multidão de pessoas que com curiosidade cercam o automóvel e, como eu era miúdo, deixei de poder assistir.

Algo que me surpreende nestes casos, é que no ar fica a reinar o silêncio e por momentos o tempo parece correr mais devagar. Não só a nossa capacidade de audição diminui como parece que a alma da pessoa que acaba de partir nos envolve, nos cerca e partilha connosco o silêncio.

Por falar em fulanos que se atiram pelas varandas, tenho uma amiga que vive no mesmo prédio de um tipo que se tentou suicidar mas teve azar nos seus intentos. Parece que o homem se atirou de um décimo andar decidido a morrer, mas teve tanta falta de jeito que a queda foi amortecida por umas enormes folhas de uma palmeira, e ele não morreu. Ficou apenas paraplégico e o condomínio do prédio teve que fazer obras no prédio, a expensas de todos, para garantir a mobilidade desejada a um deficiente motor.

Vamos cá pensar numa coisa: Quem nunca teve tendências suicidas na adolescência? Todos tivemos! Pelo menos eu tive, mas a tendência ficava apenas pela intenção de chatear a minha mãe. Ou dizia que me ia matar porque a semanada era ridícula, ou porque me criticavam porque chegava tarde a casa, ou porque descobriam uma patifaria que eu tinha feito, ou mesmo, por causa das péssimas classificações obtidas no liceu. A ideia de me matar era mais para chatear os outros, para lhes imputar culpas, do que propriamente por estar chateado com a vida, bem pelo contrário, eu queria era mais vida.

Depois estas tendências passam, principalmente quando começamos a despertar para a sexualidade de forma séria. Embora, nos homens, quem se suicida ou seja morto por enforcamento, fica com o “pirilau” em estado eréctil. Acho que tal estado tem a ver com a circulação do sangue, mas não tenho a certeza. Não vou dissecar esse aspecto, nem sequer comentar que “o tipo está com o corpo ao pendurão, mas de pau firme”.

Avançando. O suicida honesto não anda para aí a dizer que se vai matar, excepto num caso que a seguir vou relatar. O suicida honesto esconde os seus intentos aos outros para não os preocupar, e talvez tal preocupação em não incomodar seja derivada da timidez inerente ao que está a programar. No máximo, o suicida honesto deixa um bilhete de despedida a justificar o seu acto.

Estou consciente que existem os suicidas burlões e fanfarrões. São os fulanos que estão sempre a dizer que se vão matar, telefonam para casa dos outros a altas horas da noite a informarem que estão dispostos a pôr termo à vida e nunca se matam! Vivem para cativar o dó dos outros, o seu sentimento de solidariedade e no máximo, tomam meia dúzia de comprimidos que lhes dará uma diarreia bestial.

Apesar de tudo, existem excepções. Segundo me contaram, e a pessoa que me contou merece todo o crédito, num estabelecimento de ensino superior em Lisboa, existia um anafado professor que achou que estava no momento de se suicidar, e resolveu aconselhar-se com os seus amigos:

– Não sei se sabes, mas estou a pensar matar-me. Tenho falado com várias pessoas, mas a minha mulher está contra. O que é que tu achas?

Normalmente as pessoas tomavam a posição da matriarca da família e diziam-lhe que a vida é boa e que merece ser aproveitada até ao fim e no máximo do tempo.

O que é certo, é que o homem tentou mesmo matar-se e tomou uma quantidade de comprimidos que lhe provocaram uma diarreia brutal e a ida de uma ambulância ao lar para verificar que o homem estava bem.

Não existe uma moral nas histórias de suicídio, apenas o facto de alguém ter morrido por vontade própria abandonando os outros, especialmente aqueles que o amavam e eu amava imenso o meu avô Severino.

Vivia numa localidade chamada Santa Cruz do Bispo e tinha como grande sonho da vida dele, sabe-se lá porquê, ir morar para o centro de Matosinhos. E matou-se no dia anterior a mudar de casa, na véspera de concretizar o seu grande sonho.

Às vezes a alma regressa ao corpo para meditar um pouco e são seis horas da tarde e ainda estou deitado, e confesso que não sinto vontade nenhuma de me levantar, de abrir os olhos, nem sequer de fazer um movimento. A paz invadiu-me o corpo ontem e sinto-me bem. Curiosamente velo mas não abro os olhos.

Aos poucos vou perdendo a noção do tempo. Misturam-se momentos passados com os momentos presentes numa simbiose meia maluca, ou pelo menos, a que eu não estou habituado.

Finalmente chega gente a casa: é a mulher-a-dias. Esquisito ser a mulher-a-dias, tanto mais que hoje é quarta-feira e só costuma vir às terças e sextas, terá saído para fazer compras? Está quase a entrar na sala…

Grande grito, quase me ia ressuscitando! Abana-me e eu não reajo. Telefona de seguida à minha mulher que, como de costume, não atende o telemóvel, e depois tem a brilhante ideia de ligar para um número de emergência e sai de casa, imagino que para esperar a ambulância e fico de novo sozinho comigo próprio.

Gosto de estar sozinho porque sinto-me bem acompanhado. Eu não era uma pessoa dada a muitas saudades ou desejos de companhia, porque afinal, quem não gosta de estar consigo próprio, de certeza que não é boa companhia. Adorava imenso estar só a fazer as minhas coisas, as minhas leituras, a escrever, até a trabalhar.

Chateava-me um pouco o trabalho de equipa e se o tinha que efectuar era por força das circunstâncias. Até no desporto fui individualista ao praticar natação, porque, mais do que uma corrida contra os outros, havia sempre uma corrida contra nós próprios, havia sempre o desejo de superar a marca anteriormente alcançada. Até ajuda a adquirir auto disciplina, pena não me ter ajudado a deixar de fumar.

Chegam várias pessoas do INEM, e a comitiva é liderada pela minha mulher-a-dias. Verificam os meus sinais vitais e chegam à conclusão de que estou morto. Depois aparecem dois polícias um pouco mal dispostos.
– E morreu de quê?
– Não sabemos. Aparentemente morreu de ataque cardíaco, e não há sinal de sangue ou de violência – Refere uma médica, por acaso, fisicamente bastante interessante.
– Pois.
– Mas agora só a autópsia é que poderá dizer qual foi a causa da morte.
– Podemos então ir embora?
– Não. Têm que esperar pelo delegado de saúde.

Aos poucos vai chegando mais gente porque a porta está aberta. Temo até que algum intruso roube qualquer coisa, mas pelo que vejo, é tudo gente de confiança…

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