Livro “Diário de Um Morto” – CAPÍTULO II

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CAPÍTULO II – AS MINHAS DOENÇAS

 

Onze horas da manhã. Tomei o quarto café do dia e fumo mais um cigarro. Sem saber que seria para tão breve, penso mais uma vez que tenho que deixar de fumar e cortar nos cafés e na cerveja, no presunto e no queijo. O médico já me tinha alertado que a minha tensão andava alta e qualquer dia teria uma surpresa desagradável. “Na sua idade, é um perigo levar a vida que leva. Está a caminhar para os cinquenta e qualquer dia dá-lhe um treco”.

Já há uns anos, talvez seis ou sete, aconteceu-me algo estranho.

Como habitualmente, levantei-me cedo para ver o que se passa na Internet. Liguei o portátil, e de repente comecei a sentir-me mal, com tonturas. Achei que um copo de água resolveria a questão. Dirigi-me à cozinha…

De repente acordo! Tinha estado a dormir no meio do chão da cozinha como se fosse a coisa mais natural deste mundo. Continuei deitado e semi acordado a pensar na minha vida, o pavimento estava frio, mas não me estava apetecer levantar-me. Tinha um lábio inchado, um olho dorido… E cheguei à brilhante conclusão de que tinha desmaiado! Foi a terceira vez que tal me aconteceu em toda a minha vida. Regressei à cama.

Detesto conversas sobre doenças, e em matéria de saúde percebo muito pouco. Evito ir ao médico, como e bebo como se ainda tivesse 20 anos, e quase me recuso a acreditar que o corpo vai dando de si.

Nada me causava mais aborrecimento que uma pessoa contar-me a sua cronologia clinica e historial de doenças. Quando andei com uma perna engessada tive que contar milhares de vezes o que me tinha acontecido, e por solidariedade tive que ouvir milhares de histórias de pessoas a quem tinha acontecido o mesmo, ou muito pior. Quase estive para escrever a história, imprimi-la, fotocopia-la e dar as fotocópias às pessoas que me iam perguntando o que me tinha acontecido.

Acabei por nesse dia ir a um posto médico onde não me detectaram porra nenhuma, e como não tiveram sucesso, mandaram-me fazer análises. “Agora é que estou lixado”, pensei eu.

Dito e feito e no dia seguinte fui fazer as análises onde me roubaram um naco de sangue e me analisaram a urina e tive que esperar ansiosamente pelos resultados até à terça-feira seguinte.

Nesse dia, lá fui eu levantar o envelope dirigido ao médico de família, mas, como bom português, violei a correspondência alheia, e dei uma espreitadela nos exames. Os meus piores receios confirmaram-se! Claro que quando entregasse os exames ao médico, lhe iria dizer que me tinham entregue assim o papel dos resultados, sem colocarem num envelope nem nada. Mas, não sei se sabem, detesto doenças e em especial as minhas.

 

Tenho um colega de trabalho que é hipocondríaco, e até há pouco tempo nada me satisfazia mais do que chegar junto a ele e afirmar de forma solene e pesarosa “Ó engenheiro Euclides, você está com má cara. Se eu fosse a você ia rapidamente consultar um médico”. O homem ficava aflito e eu gozava que nem um perdido. Mas como eu era uma pessoa preocupada com o seu semelhante, apesar de leigo, fazia logo de seguida uma pré-triagem: “Tem tonturas? Falta de apetite? Expire e inspire para eu ouvir”. O homem, depois de me ouvir, marcava geralmente, uma consulta no hospital, mas uma consulta daquelas muito urgentes.

Voltando à minha doença. Abri o envelope na presença de um sócio meu, muito mais experiente que eu nessas coisas de saúde, e ia-lhe gritando os resultados do exame. Eritrócitos… (rufo de tambor)… 4,7. Isso é bom, garantia o meu sócio de seguida perguntava-me pelo ácido úrico.

Hemoglobina… tantantantan… 15,2. Ao que o meu sócio confirmava que estava dentro dos valores esperados e voltava-me a questionar pelo ácido úrico.

Tive que lhe dizer que ainda não tinha ácido úrico. Hematocitos tinha 7,360.

E a coisa continuou por aí a fora, tudo com valores normais! Até que chegamos à parte do colesterol, onde acusei valores perfeitamente fora do alcance de qualquer mortal. Pensei que tinha chegado o meu dia, assumi um ar solene e afirmei “estou todo lixado”. Nem vou dizer o resultado obtido, verdadeiro recorde internacional, para vossas Excelências não me começarem a chamar gabarolas e acharem que o resultado estaria falsificado.

 

Até há poucas horas atrás, eu não sabia o que era o colesterol, mas a partir do momento em que passei a ser uma vítima desse problema, pesquisei o maior número de páginas da Internet sobre o assunto e, depois desses momentos, já me considerava um especialista em colesterol. O colesterol é a gordura do sangue.

Ora bem, os especialistas aconselham-me a começar a fazer exercício físico e deixar de fumar. Isso não é novidade: qualquer porcaria que um gajo tenha e logo os sapientes aplicam essa teoria do “isso é do tabaco e do sedentarismo”. Um fulano tem um calo no pé e logo ouve vozes afirmando com convicção “tens que deixar de fumar e fazer mais exercício físico”. Ora bolas, isso serve para tudo.

Mas o que mais me afligiu foi o facto de ter que deixar de comer presunto, paio, queijos, leitão à Bairrada, e outras coisas que fazem parte dos meus hábitos gastronómicos. Aguenta-se a cerveja! Fiquei contente por poder continuar a beber cerveja sem problemas.

Também li com agrado, que uma das principais causas do colesterol é o stress. Isso é bom, assim quando nos estiverem a chatear a cabeça, um fulano tem sempre motivo para parar com a discussão por motivos de saúde: “Apesar de não parecer, eu estou cheio de razão e só não continuo a discutir contigo por causa do meu colesterol”. Tive que resolver rapidamente a questão de não haver leitão à Bairrada sem calorias nem colesterol, e sem perdas de sabor.

Devo dizer que do ácido úrico nada constava no rol de análises.

Posto isto, e na minha condição de doente, tratei logo de avisar todos os meus amigos para o facto de estar muito próximo de um AVC. Gosto disso, da atenção das pessoas, das caras de caso, dos exemplos que se multiplicam, de casos perdidos e histórias de salvação.

Também contei à minha mulher, que depois de aconselhamento com as colegas de serviço, resolveu ir comprar um chá de aveia, verdadeiro produto milagroso, e que com certeza me levaria de novo ao mundo dos saudáveis.

Eu, por outro lado, também adoptei as minhas medidas: fui até ao Pingo Doce e acabei por comprar aqueles miseráveis e caros iogurtes, cujos proprietários anunciam  verdadeiros milagres na cura das doenças do colesterol. Não acredito muito neste tipo de propaganda, mas é melhor prevenir do que remediar. Comprei, também, algumas latas de cerveja como medida profilática, e estava pronto a curar-me no menor tempo possível. Não consegui. Talvez fosse da idade, talvez já não tivesse ido a tempo.

 

A idade é tempo, um conceito que perdi. E tão relativo o tempo é, que há uns anos um alentejano, e no Alentejo o tempo saboreia-se melhor, colocou em causa, e cheio de razão, toda a teoria da relatividade considerando que a velocidade da luz não é constante ao longo do tempo. O conceito tem a ver com o Big Bang, com o facto da própria velocidade da luz ter necessariamente que ser maior do que a actual para se poder expandir, libertar-se da lei da gravidade, fugir de um universo concentrado num só ponto.

 

Não sei se a teoria está correcta mas é sempre divertido quando um português coloca em causa todos os alicerces da física. E mais giro é, quando os resultados que o alentejano apresentou foram considerados como “terrorismo científico” pelas ilustres cabeças pensantes mundiais. Com as devidas distâncias, o alentejano em causa é uma espécie de Galileu Galilei dos tempos modernos e tudo aponta que um dia a Física, não os sábios, lhe dará razão.

 

Estou nos finais da casa dos quarenta e não tive saudades nenhumas do tempo em que estava na casa dos vinte ou dos trinta anos. E por mim, e se eu mandasse no tempo, manter-me-ia na casa dos quarenta mais vinte ou trinta anos. Se tivesse chegado à casa dos cinquenta, de certeza que não quereria de lá sair, tanto mais que o momento é sempre mais divertido que o passado, e o futuro a Deus pertence. Só que o tempo, esse cabrão do tempo, andava cada vez mais depressa. Em Setembro, parece que o ano ainda se iniciou há coisa de quinze dias. E é triste o tempo passar cada vez mais depressa, tanto mais que tinha fome de viver.

 

Longe vai o tempo da melancolia dos Verões quentes e longos, em que os dias, as semanas e os meses demoravam mais tempo do que agora a passar. Do passado, apenas tinha saudades daquilo que deixei por fazer e do tempo que era muito mais longo e demorado.

 

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