Diário de um Morto – Pedro Guimarães

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A partir de hoje, o Diário As Beiras publica, por capítulos, a obra “Diário de um Morto”, da autoria de Pedro Guimarães. O autor disponibilizou-se para oferecer aos leitores, nestes dias de isolamento, uma forma de se divertirem através da leitura deste livro cheio de humor.

PREFÁCIO

No dia em que o Pedro Guimarães me pediu para escrever o prefácio deste livro, para além da indiscutível satisfação que senti, abri os quatro livros mais recentes que tinha na minha mesinha de cabeceira e nenhum tinha prefácio… Pensei de imediato que o prefácio devia estar fora de moda… Procurei outro livro ao acaso no escritório e o próprio autor no seu prefácio dizia, e cito: «Aqui entre nós que ninguém nos lê, todos os prefácios são inúteis». Fiquei esclarecida… Afinal ninguém ia ler o prefácio e, assim sendo, podia dizer o que me apetecesse como quando estamos entre bons amigos.

Admito que o convite para fazer o prefácio deste livro me encheu de satisfação por várias razões. Pela obra em si, cuja genuinidade e originalidade são evidentes, e pelo autor, de quem sou amiga há 30 anos, e a quem com este projecto vi nascer uma “alma nova” que me enche de orgulho.

Originário do norte do país, há muito que o Pedro Guimarães reside em Coimbra, cidade que o adoptou e onde se passaram várias das histórias contadas neste livro. Outras passaram-se na sua infância em terras nortenhas.

As histórias contadas nesta obra resultam de factos reais do autor, da sua família e amigos, com alguma fantasia à mistura, que nos transporta para uma viagem estimulante pelo seu mundo e suas vivências. Ao leitor fica o desafio de tentar adivinhar em cada uma das histórias aqui relatadas onde acaba a verdade e onde começa a imaginação do autor.

Gostamos de um livro quando ele nos ensina algo que queremos aprender ou quando simplesmente nos diverte, nos distrai e nos faz passar um bom momento. Esta obra tem um pouco de ambos mas também nos leva a pensar. Se morrêssemos hoje, o que gostaríamos de partilhar da nossa vida? Contaríamos tudo da forma como efetivamente aconteceu? O que não diríamos e guardaríamos só para nós? O livro também nos dá a conhecer melhor o país onde vivemos, de forma estatística e humorística, que levará o leitor a tirar as suas próprias conclusões sobre Portugal.

Desde sempre achei que gostaria de assistir ao meu próprio funeral. O Pedro consegue imaginar tal cenário com uma leveza tal que nos faz acreditar que estar morto é apenas um estado de espírito. E não será mesmo? Porque é certo que as pessoas de quem nós gostamos vivem para sempre…

Para gostar deste livro é preciso lê-lo. Mas para não gostar também. O que não vos deixa alternativa. Não se vão arrepender.

Este é o primeiro livro do Pedro Guimarães mas não será certamente o último.

(Maria José Vicente)

 

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INTRODUÇÃO

Esta é a história mais triste que eu vos poderia contar, a história da minha vida, da minha vivência e da minha morte, mas também de uma linha temporal de felicidade por observar a vida dos outros sem viver a vida de cada um deles, mas sim a minha. Gostei de a viver e voltaria a repeti-la vezes sem conta até aperfeiçoar vivências. A frase que nunca foi dita, a opção que não se tomou, a opção que se tomou, o equívoco que gerámos, os inocentes que magoámos, a piada de mau gosto, a oportunidade falhada, o nó na garganta que nunca foi desfeito.

O único sentido da vida também é de sentido único, é o caminhar desde ontem para amanhã, é sentir que o presente é efémero porque passa a cada momento, que o presente é um vazio, reflexo do que passou. O presente faz-se de conceitos sempre presentes, tábuas de salvação, sinalética que aponta o destino que estamos a escolher a cada momento.

Não sei se já viram um ser humano apodrecer como uma maçã que vai ganhando uma coloração esquisita, adquirindo um cheiro nauseabundo, que nos causa repulsa e que à primeira oportunidade a deitamos para o lixo. É alguém que não necessita de ser despejado no lixo, conhece-o desde nascença, nunca saiu dele, do local onde ser-se pessoa apenas serve de alimento às moscas e larvas.

Desconhecia a possibilidade das pessoas apodrecerem até ter percorrido algumas ruas de Nairobi, e constatar que alguns dos pedintes nessas ruas estavam podres, a pele tinha tendência a separar-se do resto do corpo e as moscas poisavam e devoram aquilo que cada vez mais se parecia com uma carcaça humana.

Ali, todo o cenário parece pertencer a um filme do universo dos zombies vivos, dos meio-mortos, daqueles que estão aqui e não estão. Porém, não o é. É o mesmo universo onde crianças brincam em verdadeiras pocilgas e lixeiras, cheias de lama e galinhas mortas pelo meio e infectadas com as mais diversas doenças. Todo aquele ambiente é estranho, e entre a desgraça, cabana sim, cabana não, existe uma tasca com nome de um filme de Hollywood.

Pode parecer estranho, mas a maioria das tascas do Quénia têm nomes de filmes: “O Regresso de Jedi”, “Casino Royal”, “Top Gun”, “E tudo o vento levou”, “Rambo” e por aí a fora… Nem percebo o que leva um indivíduo a colocar um nome de um filme ao seu estabelecimento de restauração; no entanto, naquele lugar, esse é o menor dos problemas. Por acaso, adequava-se bem à situação a existência de uma tasca chamada “Apocalypse Now”.

Folheando os jornais locais, a secção dedicada à necrologia ocupa mais espaço que as das notícias nacionais, internacionais, desportivas e económicas. A novidade não é a morte mas sim quem morreu, e morrem muito jovens, quase todos eles e, em finais do século passado, era a SIDA a maior das assassinas e, infelizmente, continua a ser.

É muito triste a condição humana quando se nasce no lado errado do mundo, ou no tempo errado, ou sob o paternalismo de um tirano. Esse tirano acumula e acumulava fortuna de tal forma que coloca e colocava em causa todos os conceitos de humanismo, e é nesses momentos que temos a perfeita noção de que a justiça e a felicidade são valores e sensações raras e aleatórias, que não são para todos. E muito excessivamente são relativos a felicidade e a justiça, quando a felicidade é um naco de pão e a justiça o alívio de que não seja sovado.

Sentimos o tal nó na garganta como sentimos o fétido cheiro da carne que apodrece ao sol, carne viva que matou há muito tempo todas as esperanças, onde o existir é simplesmente o maior dos dramas. Terras onde as lágrimas são mais abundantes que a água potável, lágrimas que alimentam sementes de ódio.

Uma grande entrada é algo fundamental para o início de um livro. Quer se queira, quer não, acaba por despertar o interesse do leitor para as páginas seguintes. É marketing, dirão muitos, mas é um marketing que resulta.

Na minha perspectiva, a elaboração de um livro tem que partir de uma ideia inicial, desenvolver o tema, criar o esqueleto, definir o final, e meter “palha” pelo meio até ter cerca de cem páginas. E eu andava cheio de vontade de criar um livro, um livro para mim e para os meus amigos, sem qualquer tipo de objectivo de o publicar, mas o futuro ditará o seu destino.

Eu tenho uma teoria de que um romance tem que ser escrito do fim para o princípio. Desenvolvemos um epílogo, o fim da história, o “casaram e foram felizes para sempre” e posteriormente teremos que pensar como é que eles se conheceram.

O meu livro tem mais de duzentas páginas. Sempre teve mais de duzentas páginas desde que o comecei a escrever. A metodologia aplicada foi a seguinte: começar com caracteres muito grandes, grandes espaços entre as linhas, e depois, à medida que ia acrescentando “palha”, diminuía o tamanho do caractere, dava menos espaços entre as linhas e diminuía as margens.

Quando anunciei ao meu pequeno mundo que ia começar a escrever um livro, passada uma semana perguntaram-me quantas páginas eu já tinha escrito, e eu respondia que tinha já escrito mais de duzentas. Passado um mês, e se me questionavam, dizia que o livro estava a avançar a bom ritmo e já tinha mais de duzentas páginas. E sempre que me perguntavam, eu dizia sempre que o livro já ia nas duzentas e tal páginas.

Duzentas páginas é um excelente tamanho para um livro. Primeiro porque é o tamanho médio, nem fica o livro perdido no meio de uma prateleira, apertado por entre dois livros de maior tamanho, e por outro lado, não é suficientemente grande para ser inibidor da sua leitura. Lê-se numa semana ou talvez em menos, e se o livro for francamente mau, como imagino que este vá ser, não comprometo o tempo desperdiçado pelo leitor.

Claro que o livro poderia ter menos páginas, mas o meu mercado alvo são aqueles que entre os quarenta e sessenta anos, especialmente aquelas pessoas que, como eu, já não conseguem enxergar nada e que se recusam a admitir que necessitam de usar óculos. Por isso, os caracteres têm que ser grandes para não envergonhar ninguém.

Duas centenas de páginas é um montante excelente tanto mais que não tinha orçamento para um número maior ou menor de páginas. E isto começou tudo com um desafio do meu amigo Rui Fonseca que é um homem da comunicação. “E se escrevesses um livro?”, perguntou-me e eu como sou meio tolo, mas não desdenho um desafio, resolvi escrever na condição que ele se encarregasse dessas tarefas burocráticas de publicação, e ele aceitou. Depois de muito escrever, chamei-lhe a atenção para o facto que a parte dele ainda estava por cumprir. Claro que esse meu amigo, aceitando que estava em falta, e depois de eu lhe ter dito que o mesmo seria composto por duzentas páginas, conseguiu um orçamento em que eu pagaria cerca de três mil euros por mil exemplares, e já com registo na Sociedade Portuguesa de Autores.

Fiquei encantado, tanto mais que eu supunha que a publicação fosse bastante mais cara, mas na verdade e com toda a sinceridade, não estava nos meus objectivos adquirir aquilo que eu tinha escrito, muito menos mil exemplares. É certo que poderia oferecer uma centena de exemplares nos Natais e nos aniversários, só para chatear os presenteados, mas mil parecia-me um número absurdo.

Sei lá, parece-me que um livro com mais páginas tem que ser mais caro desde que não seja eu a pagá-lo. A propósito disso, o meu amigo José Milhazes, aquele correspondente em Moscovo e que se exprime num sotaque tal que nem precisa de mexer os lábios quando fala, escreveu um livro intitulado “O Fim do Império Soviético”. O livro era promovido pelo jornal Público e vendido por mais 5,99 euros num dia qualquer de uma semana a quem comprasse o jornal.

Confesso que via a sua publicidade no jornal e ansiava pelo dia em que o poderia comprar, e pelas imagens de publicidade ao seu lançamento, parecia-me um livro bom, grande e com muitas páginas porque o fim do império soviético não se narra em menos de mil páginas. E até andei ali uns dias nas prateleiras lá de casa a procurar um espaço digno e arejado na ordem alfabética e o Milhazes ficaria entre o José Luís Peixoto e o José Norton. A minha organização dos livros não obedece ao que está determinado para uma biblioteca, mas como os livros são meus, organizo-os da forma como me apetece.

Chegado o dia, comprei o jornal Público e referi que também queria o livro do José Milhazes, e venderam-me um livro com cerca de cem páginas, mas com o tamanho de um iPhone. Senti-me indignado e enganado, e fui pesar o livro, e cheguei à conclusão de que pesava 82 gramas! Ou seja, o José Milhazes vendia livros a mais de setenta euros o quilo, muito mais caro que o lavagante, a sapateira ou uma bela lagosta. Para satisfazer a alma, quero acrescentar que um quilo de livros do José Milhazes dá para comprar 30 frangos já assados no Pingo Doce.

Admito que me senti ofendido, tanto mais que comprei uma edição da Mensagem do Fernando Pessoa que pesa 117 gramas, mas apenas por três euros. Tenho uma outra edição mas é ligeiramente mais pesada, tem muitas gorduras.

Indignado, perguntei ao José Milhazes porque é que ele vendia livros a setenta euros o quilo enquanto o do Fernando Pessoa era a menos de metade do preço. Referi que seria impossível um escritor conseguir resumir o fim do império soviético em 82 gramas de um livro, peso esse que nem sequer dá para encomendar fiambre. Ele riu-se e respondeu-me que tinha poder de síntese, característica que nunca consegui ter.

A propósito disso, tenho um tio (que infelizmente já faleceu), que um dia resolveu publicar um livro à sua custa, um livro sobre etnografia minhota, e para escoar o stock resolveu presentear toda a gente com a sua obra. A história poderia ficar por aqui, mas depois da oferta do livro sobre etnografia, e passada uma semana, começou a telefonar-nos para apurar se tínhamos lido e se tínhamos apreciado. Claro que todos nós afirmávamos que já tínhamos lido o livro e que era deveras interessante, e que, inclusivamente, não víamos razão para a obra não ser mais divulgada junto do grande público, mas com certeza a razão de tal ostracismo, sem dúvida, se devia aos interesses da grande indústria livreira, que privilegia sempre os mesmos, deixando de apostar em verdadeiras obras de arte e de interesse geral para a nação e os bons costumes. O problema é quando nos questionava sobre o tema da página quarenta e sete e se estávamos de acordo, era o momento em que éramos apanhados completamente em falso e o meu tio ficava bastante desiludido até achar que merecíamos uma outra oportunidade.

Esse meu tio, um dos melhores que eu já tive e concluí mais tarde que também foi um grande escritor, era daqueles que não se limitava a ser tio mas também companheiro, acumulava a faceta de ser o melhor dos homens com a de ser um verdadeiro adorador do lema “Deus, Pátria e Família” e, também sonhava com grande aventuras e epopeias. E tinha eu quatro ou cinco anos. Ele era um homem bom e cheio de conteúdo, e eu um puto. E ele, no quintal, tinha um pequeno lago cheio de barcos pequeninos, movidos a pilhas, motivadores de grandes descobertas e epopeias. A casa dele tinha três pisos, o primeiro era uma tipografia, o segundo a zona de habitação, e o terceiro era um sótão cheio de tralha antiga, indutor de grandes aventuras, talvez um sótão pejado de demónios e heróis como nós, como todos os putos.

Dita a lei do mercado que nada se desperdiça e que tendo o meu tio uma tipografia, mesmo sendo admirador do Estado Novo, porque raio haveria ele de negar-se a imprimir uns panfletos ao Partido Comunista Português? Negócio é negócio, e como eram aos milhares, aproveitava para acrescentar aos tais panfletos a origem dos mesmos, até para aumentar o negócio, “impresso na Tipografia Caravela”. Claro que o meu tio era detido para averiguações pela PIDE, mas o regime era tão caduco que tudo se resolvia na tasca mais próxima.

Para não correr riscos de andar a vender livros à porta de um hipermercado, referi ao meu amigo Rui Fonseca que não estava muito interessado em comprar mil exemplares de um livro, tanto mais que já conhecia sobejamente o conteúdo e também alguns episódios que nunca serão publicados. Afirmei ainda que tinha como objectivo que alguém comercializasse o monstro e eu pudesse viver à custa do pinga-pinga.

“Aí é mais complicado”, concluiu esse meu amigo, para logo a seguir me questionar, como quem questiona um louco, se eu queria mesmo publicar o livro às expensas de outras pessoas, seguramente gente de boa-fé e que não anda na vida para perder dinheiro, tanto mais que possuem família para alimentar e os tempos são de crise.

Afirmei peremptoriamente que sim, que o meu objectivo passava por aí, e que o meu primeiro livro deveria libertar margem suficiente para me dedicar à boa vida, e que todo o processo criativo deveria ser acarinhado, e que qualquer autor, por mais reles que fosse, deveria ter de base as suas fontes de financiamento asseguradas.

Encolheu os ombros e referiu “vou ver o que se arranja”, pensando talvez que mais valia ter seguido uma carreira de agente desportivo no mundo do futebol do que agente de escritores.

Mas para iniciar o livro, imaginei várias frases que despertassem o interesse e a curiosidade do leitor, frases do género “no tempo em que eu era drogado…”, ou “depois de ter estado vinte e cinco anos na prisão…”, ou mesmo “consegui ler todos os textos de Miguel Sousa Tavares e nunca desenvolvi tendência suicidas”. São frases muito interessantes, deveras motivadoras, mas ninguém iria acreditar.

Um tipo que se resolve dedicar à escrita tem sempre que ter a perspectiva de que a grande maioria dos livros é medíocre e só serve para consumo interno. Provavelmente, o meu também assim o será. Mas quanto a isso, batatas! Não me ouvirão dizer que Portugal não me merece, não me ouvirão reclamar contra o organismo que tutela a Cultura porque não me atribui um subsídio, não reclamarei com as editoras, porque afinal, também são empresas com fins lucrativos e não têm que andar a publicar tudo o que um pseudo-escritor escreve.

Nunca na vida vi classe profissional que tanto se elogiasse. Uns porque escrevem muito bem, acham que são especialistas em tudo e cultos e intelectualmente superiores, e elitistas. Outros são apenas frustrados, mas claro que há também os porreiros, talvez a maioria. No entanto, quase todos assumem que o país tem uma dívida para com eles.

Agora que já estraguei a minha entrada na classe, vamos lá então colocar “mãos à obra”.

Depois de matutar sobre o tema a que me dedicaria, achei que seria bastante motivador escrever sobre a Morte. Como não privo com mortos, não conheço nenhum para me relatar a sua experiência de “vida eterna”, senti a necessidade de criar um morto: eu próprio. Parece uma ideia um tanto ou quanto macabra; porém, proporciona-me um prazer imenso na escrita.

Ainda abordei o meu vizinho no sentido de que ele não se importasse que eu relatasse a morte dele, garanti-lhe que seria uma morte divertida, mas ele não aceitou, não lhe pareceu uma boa ideia. Bem podia ter colaborado, e certamente teria sido importante para a cultura, mas esta gente é assim! Falam, falam, falam, mas na hora da verdade o voluntarismo cultural fica guardado numa gaveta tal como o socialismo.

– Ó Antunes, tu davas um morto bonito e os vizinhos do teu andar agradeceriam.

– Não me chateies, Pedro.

Tenho que arranjar uma associação sem fins lucrativos qualquer para que cerca de 10% da receita da venda do livro reverta a favor dessa associação. É uma espécie de golpe de consciência, e para que as pessoas não se sintam defraudadas ao adquirirem o livro, e na pior das hipóteses dizerem “o livro é uma bela porcaria mas pelo menos ajudei algumas famílias carenciadas”. Talvez a minha!

Penso que irei fazer o lançamento do livro no dia 11 de Março, e tenho uma boa razão para isso.

Nesse dia é o aniversário da “minha senhora”, e normalmente, para comemorar, a Ana convida os familiares e os amigos para almoçarem em nossa casa não variando muito o menu: Arroz de Pato ou Arroz de Lampreia. Vou comprar as lampreias à Figueira da Foz, transporto-as vivas na mala do carro e depois entrego-as à minha sogra. O processo é muito engraçado e a minha sogra, na qualidade de engenheira química, faz ali uns milagres como, por exemplo, deitar as lampreias vivas em água a ferver, o que resulta numa alquimia de sabores e saberes.

Ter uma engenheira química na família dá imenso jeito, e até já aprendi que a melhor forma de limpar pratas para quem as tem. Não é preciso adquirir nenhum produto em especial, basta mergulhar as pratas numa panela de alumínio com água ao lume. Passados dez minutos de fervura, e devido a um processo químico qualquer que não sei explicar, o lixo acumulado na prata começa a separar-se das peças e estas ficam como novas e muito brilhantes e bonitas.

Não sei quanto vai custar o livro que escrevi, e muito menos indagarei o facto de o terem adquirido, mas imagino que o valor de capa seja muito superior ao valor do conteúdo, e assim, com pequenas dicas onde as almas caridosas possam poupar o dinheiro investido, penso que o livro será um investimento a médio prazo, e só na dica de saberem limpar pratas sem terem adquirido um produto próprio e inimigo do ambiente, já é compensador.

No primeiro capítulo e se eu não morrer até lá, tenho uma receita fantástica de como transformar batatas fritas de pacote, daquelas já moles e de mau sabor, numa iguaria fantástica. É sempre a poupar que até me dói a consciência, e essas batatas fritas vão ser devoradas na vernissage.

O ambiente no aniversário da Ana é muito agradável, mas os agradáveis sacanas bebem-me todo o vinho, mais de cinco garrafas de digestivos, e quase uma centena de cervejas.

Assim, e para o prejuízo ser menor, efectuo a pré-apresentação do livro nesse dia em minha casa, e por vergonha, espero eu, cada um deles irá adquirir a minha “obra-prima”, e assim despacho cerca de 40 livros autografados, o que já dá para pagar as bebidas.

De maneira que o meu livro vai-se chamar “Diário de um Morto”, retrata e mistura momentos da minha vida com a minha morte, sendo mais um testemunho que um testamento, e inicia-se assim: Provavelmente já houve mortes mais estúpidas que a minha, mas um tipo tem sempre a mania que a morte dele é melhor que a dos outros, e até com uma pontinha de vaidade, confesso que a minha morte foi o momento mais marcante da minha vida, logo a seguir ao meu nascimento.

(a continuar)

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