Opinião: O afogamento da História

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Grande parte dos que em Setembro aprovaram, no Parlamento Europeu, uma resolução equiparando o fascismo e o comunismo votou, em Outubro, contra uma proposta de resolução para aumentar as operações de busca e salvamento de pessoas no Mediterrâneo. Três deles são portugueses. A intenção do primeiro voto é injusta e boçal, pretendendo tão-só branquear o fascismo, arranjando-lhe por “companhia” aqueles que, historicamente, foram os seus mais seguros inimigos – os comunistas.

Nunca estará acabada a discussão acerca das contradições geradas no esforço de construir a alternativa socialista ao capitalismo. Mas não é a má concretização de uma ideia justa que invalida a justiça que se quer concretizar. Insistir no capitalismo não é, como se vê pelo mundo, a solução para as nossas vidas, pelo que é fundamental refazer os caminhos humanistas em que se envolveram Aragon, Gramsci, Picasso, Chostakovitch, Cunhal, Alberti, Dolores Ibarruri, Brecht, Angela Davis e tantos tantos outros.

Já o fascismo foi feito para ser o ponto alto da exploração do homem pelo homem na sociedade capitalista. Não há nada que se lhe compare. Por isso foi tão fácil para os acusadores do comunismo votarem alegremente, no Parlamento Europeu, a condenação à morte de centenas de homens, mulheres e crianças cujas vidas ajudaram a, literalmente, bombardear.
Compreende-se, porém, o zelo do voto anticomunista. Nem que seja pelas imagens que a História registou e a simpatia que conquistaram em todos os cantos do nosso mundo. Por isso se justificam a chuva de documentários (feitos e refeitos por quem é responsável, desde os anos 50, por uma caça-às-bruxas sem tréguas) e séries televisivas que, neste século XXI, procuram plantar memórias ali onde as imagens desdizem a tese da equiparação dos “ismos”.

É que os Rambos e os McGyvers, promotores de “talibãs”, perderam credibilidade na manhã de ignomínia em que os seus heróis mandaram duas torres ao chão (lembram-se?). Matando com vontade semelhante à que matou, num outro 11 de setembro, Victor Jara no Estádio de Santiago do Chile.

A verdade é que nunca o capitalismo, pai e mentor da violência fascista, conseguiu perdoar aquela bandeira vermelha desfraldada no Reichstag, anunciando à Humanidade a derrota da barbárie; nem conseguiu perdoar o rosto desafiador de Guevara convertido em Arte pela mão de Andy Warhol (persistindo às balas fascistas que, afinal, o imortalizaram).
Mas, menos ainda, conseguiu o capitalismo e os seus protagonistas perdoar a onda libertadora que, desde 1917, impulsionou sistemas de educação, de saúde, segurança social, movimentos de emancipação das mulheres, de defesa dos direitos do trabalho, contagiando o mundo inteiro e a vontade dos “ninguéns” à vida com dignidade.

Para a dupla condenação invoca-se a contabilidade dos mortos. Sou dos que acham que uma morte só, já é demasiada morte. Mesmo sabendo que a democracia que nos foi dada a herdar custou vidas como a de Bento Gonçalves (que morreu no Tarrafal), Militão Ribeiro, José Dias Coelho (o de “A Morte Saiu à Rua”), Catarina Eufémia, todos eles comunistas. E muitos mais que o não eram, mas nenhum deles fascista. Venha então o Parlamento Europeu encontrar, para aqueles a quem devemos a liberdade, os “equivalentes” fascistas no meio de quem os matou ou mandou matar.

Não nos iludamos, porém. Não é com o passado que a direita do Parlamento Europeu quer ajustar contas. É com o presente (de luta). É com o futuro (de esperança), numa guerra que permanece depois de anunciado o “fim da História”.
Não é, pois, o fascismo que incomoda o Parlamento Europeu. O que lhe causa pânico são as vozes entoando “uma terra sem amos” que possam renascer da memória daquela bandeira vermelha ondulando nas ruínas do Reichstag, trazendo também para a vida aqueles que, num distante parlamento, foram condenados à morte por afogamento.

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