Opinião – O que me ensinaram não serve para nada!

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Aprendi a ser médico. Estudei para entender a pessoa. Treinei os modelos que me permitiam perceber as queixas dos que me procuram. Investigar, tal e qual um detetive, na narrativa que me contam, à procura de sintomas que se pudessem enquadrar numa patologia. Patologia que necessitaria de um tratamento, que eventualmente levaria a uma cura.

Ao longo dos 11 anos do meu treino, 6 anos de curso, 1 ano de internato geral e 4 anos de internato específico, ninguém me preparou para o que faço no dia-a-dia. Todos os dias são uma luta pela sobrevivência. Não, não estou a falar de tratar dos doentes. Para esses eu fui treinado.

Estou a falar do que faço no meu dia-a-dia. Ninguém me preparou para lidar com estruturas de saúde que não fazem ideia como são as condições do meu trabalho.

Não me prepararam para diariamente ouvir queixas e reclamações de pedidos que não posso fazer; fazer consultas na Junta de Freguesia, onde faço atualmente; não ter material para sequer medir a tensão arterial; lidar com as pressões constantes dos outros grupos profissionais esgotados de recursos; para negar pedidos de ajuda aos meus doentes.

Um exemplo do que me consome diariamente é não poder passar exames pedidos no Hospital. “Eu sei que para si era melhor fazer a análise na sua comunidade. Sei que não faz sentido deslocar-se 100km em transportes públicos que não existem. Eu sei. Mas não posso.” O estado no Despacho n.º 10430/2011 diz que “As entidades referidas nos números 1 e 2 não podem solicitar a prescrição de exames às unidades de cuidados de saúde primários, ficando estas últimas impedidas de prescrever MCDT solicitados por essas entidades.” As entidades a que se referem são estabelecimentos hospitalares integrados no Serviço Nacional de Saúde, unidades convencionadas de hemodiálise, hospitais privados e médicos no exercício de medicina privada. E será que estes médicos lhe podem pedir os exames? Não. O mesmo despacho proíbe que o façam no público e se o fizerem a nível privado não são comparticipados. Não estou a dizer que quero passar exames a pedido de outro médico. Quero pedir a todos os que lerem esta notícia: lutem para que todos os médicos no decorrer da sua profissão, independente do local de trabalho, lhe possam pedir os exames complementares que necessitam para chegar a um diagnóstico.

Chega! Basta! A greve é este grito. Estou cansado. Só queria que me deixassem ser Médico.

Não preciso de mais tempo. Preciso de Paz.

Opto por menos três dias no meu vencimento como forma de luta. Podem dizer que o faço porque não ganho mal. Não me vou queixar. Ganho 1750€ por mês. Cá em casa tenho uma professora que, nos meses que tem emprego, ganha 830€ por mês. Por outro lado, a minha mãe ganha 500€ por mês, trabalha bem mais que eu e ainda cuida de toda a família. Posto assim, em perspectiva, até diria que ganho muito bem.

O que me faz sofrer nesta forma de luta são os meus doentes. Porque 3 dias de consultas são 40 pessoas que ficam por observar. Sei que vou fazer tudo para os remarcar o mais cedo possível. Mesmo que isso implique ficar mais umas horas sem vir a casa para estar com a minha filha.

Por quanto tempo será assim? Quanto tempo até me atingir o cansaço e deixar de me importar?

O que me ensinaram não serve para nada. Não me prepararam para isto. Circula um texto do Prof. João Lobo Antunes que diz: “(…)dantes tratava pessoas agora sofro (..)”.

 

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