Cordis Vobis

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 João Boavida

Coimbra tem destas coisas; como não a amar? De vez em quando somos tocados pela essência dela, se é que se pode dizer assim, algo que vai por nós adentro até ao fundo da nossa memória da cidade e da sua lenda, e vindo do passado projeta-se para o futuro. De um modo vago, mas que se intui e expressa num afetivo reflexo intelectual, e também musical; ouvido, ou apenas sugerido, mas, em todo o caso, musical, sempre. Esta cidade está cheia de música, que nos prende, com que nos identificamos e pela qual nos sentimos próximos. Aquela de que se fez emblema e se inscreve em fundo sonoro no visual gráfico e único que a cidade dá a quem chega, e os olhares repetem desde as gravuras oitocentistas até hoje. Mas também a dos códices que gemem na Biblioteca Geral ansiosos pela transcrição, execução e gravação, passando pelas baladas ansiosas, motivantes e belas dos anos 60, e a renovação que alguns guitarristas da mais alta qualidade lhe estão hoje a proporcionar.

Há dias, no Museu Machado de Castro, senti tudo isto ao assistir a um pequeno concerto do dueto “Cordis”, uma mistura inesperada de piano (Paulo Figueiredo) e guitarra coimbrã (Bruno Costa). A ideia é boa porque a guitarra de Coimbra, com aquela maravilhosa sonoridade, merece os apoios, os prolongamentos e enquadramentos quentes do piano, que embebem aquela vibração única e a acompanham e contrapõem numa envolvência que parece renovar a figura/fundo, a “gestalt” da própria cidade, isto é, do que dela estamos à espera, mas como se vista de outro lado ou noutros tons.

Dias depois foi o espetáculo de músicas inéditas de Fernando Seabra Santos, que por certo saudoso dos tempos da Brigada Vítor Jara, em estilo diferente, contudo, nos revelou treze temas inéditos de grande qualidade musical e literária. Se lhe juntarmos um excelente arranjo – musical, gráfico e fotográfico – e uns intérpretes de primeira linha (vejam só: Camané, Cristina Branco, Filipa Pais, Luís Represas, Manuel Freire, Martinho da Vila, Paula Oliveira, Sérgio Godinho, Vitorino, e mais o Orfeão Académico, o Coro Misto e o Orfeão dos Antigos Estudantes) temos um espetáculo, um livro e um disco de primeira qualidade.

Ora, penso eu, uma cidade em que o magnífico reitor da universidade, ainda para mais homem da ciência dura e da técnica rija, faz músicas e poemas assim, não pode ser uma cidade qualquer; nem uma qualquer universidade. E não são. Por certo que isto perturba os estereótipos que de Coimbra têm alguns dos nossos intelectuais da opinião feita, mas paciência, que se há-de fazer? Damos-lhe música! Certo é que se o “hoje”, segundo o álbum, é «a única certeza», esta nova música “coimbrã” fala-nos, à sua maneira, das certezas que já foram e das que hão-de vir a ser. Então não é?

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