Opinião: Derivar pela cidade

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Manuel Rocha

Pode passar-se por uma rua a vida inteira e dela conhecer apenas os muros que a sujeitam. Assim são as cidades – artérias por onde se passa e os lugares onde se mora, estes últimos, às vezes, permitindo os olhares dos curiosos, outras vezes fechados sobre si. Em Derivas, o espetáculo em que a companhia portuense mostrou Coimbra aos passantes como eu, a Cidade revelou-se além dos muros. Três horas por lugares que os dali nunca tinham mostrado aos que por ali passavam, da Praça Velha à Cerca de Santo Agostinho; e sítios que deixaram de viver porque nada mais lhes restou do que o abandono, como o Turíbio ali à Praça Velha ou a antiga sede da ANP fascista, no Pátio da Inquisição. Três horas a viver Coimbra – a das louças, a das cheias, a dos salões de baile, dos armazéns da baixa, das hortas nos socalcos da encosta. Três horas a viver Coimbra que é o mesmo que sonhá-la para além das negociatas do metro-que-nunca-o-foi, da especulação imobiliária, da desindustrialização, do abandono dos lugares de onde fugiram as pessoas e as mercearias, umas para habitar os bairros que as políticas municipais e os pato-bravos roubaram à várzea e aos olivais, as outras engolidas por uma febre supermercadófila mais avassaladora do que o caudal do Mondego em dia de galgar margens. Três horas a revisitar fantasmas que eu conheci em vida: os empregados do Turíbio que faziam furos nos cintos e aceitavam serviços de coser joelheiras no buraco aberto pela brincadeira, as velhotas das tardes de chá e converseta à mesa do Arcádia, as prostitutas da Rua Direita e do “banco” do Loureiro dos cafés, as pessoas sem outro traço particular do que o de fazerem parte de uma multidão que desapareceu deixando a Cidade nua. Três horas a semear vontade de regressar àqueles lugares moribundos onde ainda se percebe o rasto de gente viva.

Em Coimbra, nem que não se queira (e eu tanto que não queria), há sempre motivo para reclamar que “no meu tempo…”, tal é o contraste entre esta urbe abandonada e a Cidade viva de há 40 anos. Um abandono que não é sina, é propósito, é programação, é insistência. Ali para os lados do Arnado a Cidade está em guerra; as vítimas principais são os comerciantes, os moradores das Rua Simões de Castro e todos os cidadãos que por ali passavam e que de tal luxo se vão desabituando. O assunto resume-se a que era preciso um estaleiro para as desastradas obras que se arrastam defronte da Auto-Industrial, e a opção foi o espaço da Simões de Castro, menos fértil em oportunidades de negócio do que a Rua do Arnado, ali mesmo ao lado e de impedimento remediável. O costume, sempre que as pessoas interferem com os negócios, queixa-se um comunicado dos moradores. Na fúria obreirista voaram semáforos e passadeiras, reduzindo-se o peão à condição de estorvo, num lugar em que o envelhecimento se transformou, de vantagem da vida, num constrangimento. Por ali vai perdurando obra mais demorada do que foi a de Santa Engrácia de Lisboa, se atendermos à complexidade relativa do caderno de encargos e ao prazo de execução do empreendimento. Trata-se de uma rotunda que irá acolher em duas faixas de rodagem as três que o alcatrão despeja da entrada norte, para felicidade dos bate-chapas da região e desespero dos futuros condutores engarrafados. A perfeita oval onde vai plantar-se uma escultura já mereceu encargos de encolhimento, porque os autocarros não tinham por onde manobrar, e de fora da reforma ficaram as ruas Mário Pais e Rosa Falcão, onde o pavimento incomoda quem o tem de pisar, entre rodas e sapatos. Não longe dali, a Montarroio já deve dois meses ao descanso dos moradores, alguns sequestrados em casa, outros com dificuldade para levar o lixo doméstico aos lugares de recolha.

Sabem as cidades sobreviver aos seus habitantes, às vezes ruína, às vezes cenário. A Coimbra que nos merece precisa de ser herança, outra vez vivida nos lugares de onde a gente foi expulsa a golpes de mansa crueldade, o abandono e a especulação no lugar da espada das lendas, o estaleiro desprogramado a enxotar o dia-a-dia. O presente de Coimbra é demasiado triste, o futuro não tem de o ser.

 

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