Opinião: Os gestos que sustentam a cidade
Uma cidade é feita de pessoas, mas também de afastamentos. Entre prédios, ruas cheias e transportes apinhados, vivemos quotidianamente lado a lado com desconhecidos. Georg Simmel, sociólogo que estudou a vida urbana no início do século XX – e cuja obra permanece notavelmente atual – observou que a cidade moderna impõe um ritmo de relações calculadas e superficiais, em que a intensidade dos contactos humanos é comprimida pela velocidade e pelo anonimato.
Nesse contexto, pequenos sinais de atenção ganham significado. Gestos simples, como um sorriso no elevador, segurar a porta a um desconhecido ou oferecer uma palavra de cortesia, traduzem cuidado e resistência social. Até mesmo evitar ocupar dois lugares de estacionamento, não gerar ruídos que perturbem os vizinhos ou ajudar alguém a carregar as compras fortalecem os laços urbanos. Nascidas da prática diária, estas atitudes consolidam vínculos e constroem comunidade.
Os laços urbanos são frágeis, mas essenciais. Eles lembram que a cidade não é apenas betão e trânsito, mas também um espaço de convivência possível. Cada ação fortalece a teia invisível que nos mantém unidos e ajuda a consolidar identidades. A sociabilidade urbana, portanto, não depende exclusivamente de grandes estruturas ou políticas públicas. Nasce do reconhecimento do outro, na cedência de lugar no autocarro ou na fila do supermercado e na ajuda prestada nos espaços partilhados.
A solidão urbana é uma realidade para muitos. Moramos perto de milhares de pessoas e, ainda assim, sentimos falta de conexões verdadeiras. É nessa tensão que surgem oportunidades de convívio, desde vizinhos que se ajudam em pequenas tarefas até comunidades que organizam atividades coletivas. Na Universidade de Coimbra, por exemplo, o projeto “Abraço de Gerações” promove o encontro entre estudantes e idosos, oferecendo alojamento em troca de companhia e apoio. A iniciativa combate o isolamento sénior e a crise habitacional, mostrando que a vida social não desapareceu, tornou-se apenas mais delicada e exigente de presença atenta.
A verdadeira sustentabilidade da cidade mede-se menos pela altura dos edifícios e mais pela profundidade da nossa disponibilidade para a coletividade. Essa presença consciente, que exige uma pausa na pressa quotidiana, é o preço a pagar pela qualidade da vida coletiva.
Num tempo medido pelo relógio, pela agenda e pelo distanciamento, esta cultura de atenção é uma ação política. Subverte a lógica do individualismo e da eficiência a todo o custo, reclamando o espaço público para o vínculo em detrimento do lucro. Insiste na humanidade em contexto de indiferença e cria coesão social quando tudo parece conspirar para o isolamento. A sociabilidade é um trabalho diário, feito de pequenas atitudes, de normas de cortesia e reforço de laços. Se Simmel já observava a superficialidade das relações urbanas, estes gestos provam que ainda é possível cultivar convívio significativo.
São estes pequenos atos de atenção que transformam a cidade de mero espaço de passagem em lugar de vida partilhada.
Pode ler a opinião de Ana Raquel Matos na edição de hoje (26/10/25) do DIÁRIO AS BEIRAS


