Opinião: O porteiro e o estado da arte
 
                                        
                                    Nos anos 50 do século passado, David Manning White formulou uma teoria que se tornou central nos estudos do jornalismo: a teoria do gatekeeping. No essencial, descreve o jornalista ou o editor como o “porteiro” da informação – aquele que decide o que entra e o que fica de fora do espaço público. Ao estudar o processo de seleção noticiosa nos jornais norte-americanos, White concluiu que cada escolha editorial reflete uma rede de valores, de hábitos e de responsabilidades. É o modo como os media filtram, como enquadram e a quem dão voz que define a qualidade do ar que respiramos em comum.
Quase oitenta anos decorridos, o papel do “porteiro” continua a ser decisivo. Um caso ocorrido há duas semanas ilustra-o bastante bem. Referimo-nos a um influenciador digital, Gonçalo Sousa, que se autoapresenta como “macho tóxico” e que construiu notoriedade nas redes sociais com publicações racistas, machistas e xenófobas, além de ligações à extrema-direita – circunstâncias que já lhe valeram a suspensão da conta no X. Apesar deste perfil, surgiu num vídeo promocional do programa de debate Estado da Arte, da RTP, cujo elenco iria integrar. O episódio mostra de forma exemplar o que acontece quando o “porteiro” se distrai. Ou quando acredita que ninguém observa a porta.
É conhecido o desenvolvimento. A direção de informação da RTP, liderada por Vítor Gonçalves, reagiu quando o caso gerou alarme público, para afirmar que “ponderou e reviu a sua posição” e que os comentários do influenciador são “inaceitáveis”. Assim é, de facto. Contudo, se o recuo foi célere, também foi tardio. A decisão de o convidar dificilmente poderá resultar de ignorância – a não ser que admitamos que o diretor de informação seja alguém desinformado. Gonçalo Sousa é amplamente conhecido, e o conteúdo das suas posições está a um clique de distância. Tudo indica que a RTP acreditou que a presença do influenciador passaria despercebida e que o episódio se diluiria na rotina mediática. Talvez julgasse também que as suas “toxicidades”, muito ao sabor do tempo, multiplicariam audiências. O alarme soou quando a contestação alastrou.
A função de gatekeeper exige o contrário: que haja discernimento antes de surjir o ruído. O editor cumpre o seu papel quando antecipa o impacto simbólico de cada decisão e sempre que avalia o que deixa entrar no espaço mediático. Quando falamos do serviço público, esta responsabilidade é ainda maior, porque a RTP não é um canal como os outros. Neste caso, o papel do gatekeeper é muito mais do que abrir ou fechar portas: é proteger a integridade do espaço público. Se o bom jornalismo cumpre a sua função democrática quando escolhe com lucidez as vozes que legitima, num canal de serviço público esta preocupação deve ser muitíssimo superior. É no gesto silencioso de abrir a porta a quem enriquece o diálogo comum que o serviço público revela a sua verdadeira força.
Ao tentar integrar uma figura associada à retórica da misoginia e da intolerância, a RTP fragilizou o vínculo de confiança que sustenta a ideia de serviço público. O contraste com a dispensa de vozes de reconhecida densidade intelectual, como a historiadora Raquel Varela, reforça a sensação de desorientação: o pensamento crítico cede à visibilidade fácil, o argumento à provocação, a substância ao imediatismo das redes. Perante este cenário, é legítimo interrogar: qual é, afinal, o “estado da arte” do jornalismo e do serviço público na RTP? O que nos diz este caso sobre o seu nível de desenvolvimento e de exigência? A resposta, infelizmente, parece apontar mais para a capitulação perante o ruído do que para a defesa intransigente da integridade do espaço público.
 
                            
 
                 
                 
                