Opinião: Marcelo e a culpa

O ainda nosso Presidente, a quem não são dados intervalos de lucidez, num dos seus destrambelhos últimos, resolveu desenterrar a questão da lusa culpa coletiva pelos crimes coloniais.
Cavalgando a onda marcelista, logo uma inflamada ministra da igualdade racial, de terras de vera cruz, em linha com as narrativas de demonização histórica que alimentam algumas elites do lado de lá do atlântico, veio reivindicar a real consumação da devida reparação.
Existe, no entanto, um equívoco persistente, no caso do Brasil, primeira colónia a ser concedida independência, no final do século XIX, por um país que, ainda nesse século, foi o primeiro no mundo a abolir a pena de morte. É que, na verdade, a existir alguma culpa coletiva, no Brasil, ela será, prima facie, dos colonos antepassados dos nacionais atuais: dos pais, dos avós, dos bisavós, dos tetravós da geração da ministra.
Bem diferente é o caso africano. O colonialismo português, aí, seguiu uma triste matriz europeia, primeiramente identificada por Hannah Arendt na segunda parte, dedicada ao Imperialismo, de As Origens do Totalitarismo.
Em África, um real apartheid — económico, político, educacional e social — atravessou todo o século XX, até às independências. Conjugado com a exploração predatória dos recursos naturais autóctones, constitui uma das principais causas da persistente pobreza e dificuldade económica dos jovens países.
Donde, assumir sem complexos a existência de uma responsabilidade concreta e traduzir essa assunção num imperativo político e moral de ajuda económica e social às antigas colónias deve constituir um não problema.
Como Thomas Piketty, a propósito da dívida imposta ao libertado Haiti pela republicana e igualitária França — num dos maiores escândalos políticos e morais da história do pós-colonialismo — de modo enfático sublinha, em Capital e Ideologia.
Mas assumir essa responsabilidade é muito diferente de proclamar uma culpa coletiva das gerações atuais pelos pecados, efetivos ou imaginários, dos seus longínquos ancestrais.
Neste ponto, Hannah Arendt — que, em Eichmann em Jerusalém, introduziu o conceito da responsabilidade coletiva dos alemães pela Shoah — estava errada.
Não existe culpa coletiva. A culpa é pessoal e intransmissível. Como não existe culpa retrospetiva. A culpa é atual.
Pois, não esqueçamos, a título exemplar, ter sido a proclamada culpa coletiva e retrospetiva dos judeus que os levou de inquisição em inquisição, de fogueira em fogueira e de holocausto em holocausto, até ao holocausto final.
Bom… Ora vamos lá ver… O PR… O PR sabe. O PR sabe muito bem. O PR sabe muito bem que a culpa é pessoal e privada. O PR sabe bem que a culpa do criminoso defunto, morre com ele e é passada, bem como sabe que a culpa do criminoso vivo, vive com ele e é presente. O PR sabe também que o acto criminoso sem reparação de cada qual é passado e presente. O PR sabe também o que é a reparação subjectiva e a kátharsis, que é aristotélica e não platónica. O PR terá lido Aristóteles e sobretudo a República de Platão. O PR, se for um céptico, sabe que o povo nunca foi, não é, e nunca será sábio mas que é, ora végeto, ora frouxo.
O PR também sabe muito bem o que se está a configurar, há já algum tempo, na sua fronteira e em fronteiras alheias. O PR sabe bem que, no futuro breve, poderão surgir novas culpas criminosas, pessoais e privadas, portanto de cada qual, que depois se tornarão também passadas e por reparar. O PR sabe e sabe-o muito bem.
O velhusco PR, que conhece bem determinadas e velhuscas cadeiras, sabe bem que é mais confortável de sentar uma velhustra mas robusta cadeira de estofos e molas renovados, do que velhustra cadeira deixada em estado periclitantis, na qual agudos e politicamente tarimbados – com a sua licença – rabos, não se afligem em sentar, mas que vezos e laxados – com a sua licença – rabos, se incomodariam muito em sentar.
O PR tem valores rústicos mas tem também outros mais urbanos. O caso da culpa é um caso não de valores urbanos, mas um caso de urbanidade.
As dívidas, sempre que há muitos endividados, têm diverso modo de se saldar. Isso, o PR também sabe. Ficou-lhe da tarimba no cadeiral jurídico.