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Opinião – Demência

26 de fevereiro às 11h04
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Um salão onde com espaço legal cabem dez macas mas tem dezassete. Corredor anexo convertido em espaço de mais sete macas, agora bloqueando portas e acessos. Um gabinete único de tratamentos. Nenhum gabinete de consulta. Doentes que chegam do INEM e podiam vir a pé ou com um amigo. “Temos direitos”. Gente que há duas décadas era tratada nos locais de origem, por pequenas feridas, traumas sem gravidade, indisposições. Vêm de ambulância de Mangualde, Lousã, Condeixa, Cantanhede, Castanheira de Pêra, tudo lugares encerrados por Correia de Campos e seus seguidores. “O meu tio é bombeiro e chamou a ambulância”. Ao meu lado uma demenciada grita “ai eu” ininterruptamente. Outra tenta levantar-se e distribui insultos e impropérios que nunca disse nem alguém imaginaria que conhecia. “ai eu”.
Chega a terceira doente do domus que devia ter médico mas prefere mandar todos os utentes para o CHUC. O negócio dos que dão nome e cobram, mas não cuidam – coisa de amizades! “E eu? Ninguém me vê ?” diz um que sangra da mão que cortou na rebarbadora. Os auxiliares não existem, porque a gestão acha que chegam dois para limpar, transportar, dar de comer, acompanhar a outros hospitais, deixam as salas sujas, as macas por compor, os materiais por renovar. Eu sou médico, maqueiro, às vezes enfermeiro. “quero mijar” grita o da maca 45. “ai eu”. E agora os monitores de três disparam e tocam sem que alguém os desligue. Olho o Sclínico da urgência e inscrevem-se doentes cada 5 minutos, mais que os compradores do Pingo Doce, ou as sirigaitas da Zara, da Pull and Bear juntas. Chegam mais macas que ficam mais longe. São doentes que não podemos confortar. Terminais de neoplasias, num país onde os paliativos não conseguem dar resposta. Um país onde as famílias não conseguem assumir o infortúnio dos idosos. Um SNS onde reduziram mais de trezentas camas só em Coimbra. “não levo!, ele não tem condições para ir para casa”. “ai eu”. E sangra outro, mas não temos maca para suturar. 11:01 Faz-se o penso de pé. 11:15 E inscreve-se um boneco da Michelin – enfisema torácico – para colocar dreno. 11:17 E agora um abcesso perianal para drenar. “ai eu” bip bip bip. “O dr pode me ajudar?” É o interno do geral aflito com a surpresa que lhe caiu nas mãos. Toca o telefone e é do bloco para ir o dreno. “Oh doutor este Sr tem de pedir transporte” diz o enfermeiro. “Falta o Covid da maca 65”. Diz outro interno. “ai eu”. Temos de dar altas ou os doentes ficam na rua. Ligam os colegas da medicina geral a pedir apoio. O sabor das conversas já transporta cansaço. Apetece-me sair dali. Apetece-me desistir. Quem construiu esta demência devia trabalhar nela. “Dr tem de ir à sala de emergência – politraumatizado”. Isto é o produto de inúmeros erros de decisão. Tem relação com a medicina defensiva, com o encerramento de alternativas, com os que não trabalham e nunca são castigados por isso, com a ausência de lideranças organizadas, com a falta de avaliação dos prevaricadores, com a criação de protocolos disfuncionais. “ai eu” Com a falta de pessoal. Faltarem auxiliares nesta bagunça é idiota! São o pessoal mais barato mas que garante a higiene, agiliza os transportes, coloca as algálias, muda as fraldas. Mas são dois para um número incalculável de solicitações. Portugal criou um problema grave nas Urgências dos Hospitais Centrais porque desqualifica os atendimentos fora deles. Portugal destruiu um belíssimo SNS e hoje não responde ao infortúnio e ao azar de ficar doente.

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