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Opinião: De Matias a Leão XIV

26 de maio às 11 h11
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O livro dos Atos dos Apóstolos, da autoria de S. Lucas, narra os acontecimentos do pequeno grupo de discípulos de Jesus após a Sua ascensão. Um dos problemas importantes que é abordado logo no início relaciona-se com a liderança da comunidade. Esta estava entregue aos doze apóstolos, que entretanto tinham ficado reduzido a onze após o suicídio de Judas Iscariotes. Pedro, enquanto líder dos apóstolos, dá início ao processo de substituição: “Apresentaram dois: José, chamado Barsabás, que tinha como cognome o Justo, e Matias. E, depois de rezarem, disseram: «Tu, Senhor, que conheces o coração de todos, indica-nos qual destes dois escolheste para tomar lugar neste ministério apostólico, que Judas abandonou a fim de ir para o lugar que lhe pertencia». Lançaram, então, sortes, e a sorte caiu em Matias, que foi agregado aos onze apóstolos.”
Nos últimos dois mil anos, a renovação dos lugares de liderança na Igreja foi sofrendo alterações, embora sem necessariamente encontrar um mecanismo melhor do que este sistema primitivo em que se decide à sorte perante candidatos de idoneidade reconhecida. A substituição do próprio sucessor de Pedro enquanto líder do colégio apostólico foi conhecendo diversas formas ao longo dos últimos dois mil anos, convergindo nos últimos séculos para a eleição através dos cardeais, elenco de clérigos (hoje maioritariamente bispos) diretamente nomeados pelo próprio Papa. Tal como na eleição de Matias, no conclave os cardeais devem procurar escutar os sinais do Espírito, mas, nas palavras do então cardeal Ratzinger em entrevista: “Eu diria que o Espírito Santo não assume exatamente o controle da questão, mas, como bom educador, Ele deixa-nos muito espaço, muita liberdade, sem nos abandonar completamente. Portanto, o papel do Espírito deve ser entendido em um sentido muito mais elástico, não como se ele ditasse o candidato em quem se deve votar. Provavelmente, a única garantia que Ele oferece é que a coisa não pode ser totalmente arruinada. Há muitos exemplos de Papas que o Espírito Santo evidentemente não teria escolhido.”
Um aspeto que marcou pela positiva este processo foi a queda dos Estados Papais em 1870, durante o pontificado de S. Pio IX, que permitiu que os Papas deixassem de ter responsabilidades na administração de território e se pudessem dedicar plenamente à sua missão espiritual. Esta bênção, como a designava S. Paulo VI, permitiu que todos os Papas eleitos desde então (a começar por Leão XIII, em 1878 ) assumissem uma envergadura moral extraordinária que permitiu ao papado chegar ao século XXI como o mais forte de todos os poderes não assentes na força militar ou económica (os “soft powers”).
O novo pontífice Leão XIV insere-se assim nesta linhagem de Papas contemporâneos, responsáveis por uma Igreja que não tem parado de crescer e de anunciar a mensagem de Cristo onde ela é mais necessária. Não espanta por isso que neste par de semanas o novo Papa se tenha já desmultiplicado em atividades e declarações de grande impacto, desde a sua alocução inicial no dia da eleição (começando enfaticamente com a saudação do próprio Cristo: “A paz esteja convosco!”) até ao importante discurso ao corpo diplomático, sublinhando novamente a importância da paz, que só pode ser apoiada na verdade e na justiça. Ad multos annos, pater sancte!

Autoria de:

Rui César Vilão

1 Comentário

  1. José Pina diz:

    O Espírito Santo não impõe, mas lá conduziu o papado a que se fosse afastando dos poderes terrestres e vaticinasse uma “paz sem vencedores nem vencidos”. Oxalá Leão XIV consiga o que parece impossível nos tempos que correm.

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