diario as beiras
opiniao

Opinião: A violência doméstica e os muros intransponíveis

14 de junho às 10 h43
0 comentário(s)

Daniela Padrino e Carla Martins não se conheciam. As suas vidas nunca se cruzaram, mas as suas mortes acabariam por uni-las, numa tragédia comum: morreram as duas às mãos do mesmo homem. No espaço de 15 anos, João Pedro Oliveira matou duas ex-namoradas, ambas de forma extremamente violenta. Carla foi a primeira vítima, morta em Castelo Branco, em 2009.

Morreu esfaqueada e degolada, menos de um mês depois de pôr fim a um namoro de oito anos com o assassino. João deu-lhe 23 facadas. Foi condenado a 16 anos de prisão, mas saiu ao fim de dez anos. Daniela tinha 36 anos e foi morta há um ano, em Matosinhos. Ele esperou que ela saísse do trabalho e atropelou-a: subiu o passeio e fez o carro chocar contra ela, projetando-a para a estrada. Depois, num movimento repetido de aceleração e marcha atrás, passou-lhe por cima da cabeça sete vezes, até a matar. Sete vezes. Como é comum nestas histórias, também esta tragédia se fez anunciar: duas semanas antes do crime, Daniela tinha apresentado queixa de João Pedro, por ameaças e agressões. Ele ainda estava em liberdade condicional pelo assassínio da ex-namorada. No entanto, ninguém fez nada.

Em 2024 foram mortas 19 mulheres em contexto de violência doméstica. Só em janeiro deste ano, quatro mulheres foram assassinadas por homens com quem tinham uma relação de intimidade: é uma média de uma vítima por semana. A violência doméstica matou quase 700 pessoas, só em Portugal, nos últimos 25 anos. Dados da ONU dizem-nos que, todos os dias, morrem no mundo cerca de centena e meia de mulheres, raparigas ou meninas, às mãos de homens do seu círculo próximo ou de familiares: é uma morte a cada 10 minutos.

Estes números não podem continuar a ser ignorados. A violência doméstica mata. A violência de género mata. É tempo de olharmos para este fenómeno com a seriedade e a urgência que ele merece. Embora se trate de um crime que acontece, na maioria das vezes, dentro de quatro paredes, no interior da casa onde coabitam vítima e agressor, por norma é uma tragédia que se faz anunciar. A maioria das vítimas queixa-se, pede ajuda, confessa a alguém o que está a passar, aparece no trabalho com marcas e nódoas negras no rosto ou no corpo. Há sempre sinais – e visíveis. Trata-se de um crime público, o que significa que qualquer pessoa pode (e deve) denunciar. E muitas são as mulheres que procuram a proteção das autoridades e, mesmo assim, acabam mortas.

Quando uma vítima pede ajuda, é preciso atuar. A violência doméstica não pode ser uma condenação. Tem que ser possível salvar quem tem o infortúnio de cair num drama destes. Ao segundo feminicídio – violentíssimo e premeditado – João Pedro Oliveira foi, finalmente, condenado à pena máxima: 25 anos. Mas, mais uma vez, a Justiça chegou tarde demais. Quando a Justiça decide que matar uma mulher com 23 facadas merece apenas 16 anos de cadeia – dos quais apenas 10 são efetivamente para cumprir – está a minimizar o horror. O que é que era preciso para, logo neste primeiro episódio, o assassino ser condenado à pena máxima? A Carla podia ter tido uma morte mais violenta, mais hedionda e brutal? E a morte da Carla não chegava para conseguirmos evitar a da Daniela? Como é que é possível que um homem em liberdade condicional – por esfaquear até à morte uma ex-companheira – não a veja ser imediatamente suspensa, quando há outra mulher a acusá-lo de agressões e ameaças?

Nada trará a Daniela e a Carla de volta e, por isso, não há verdadeira Justiça para um crime destes (dois, no caso), mas ainda somos um país de brandos costumes no que toca à violência doméstica. As vítimas já têm demasiados muros para saltar: o medo, a vergonha, a insegurança, a baixa autoestima, o isolamento social a que, na maioria dos casos, são votadas pelos agressores, a preocupação com os filhos e a família, a falta de condições financeiras para mudar de vida. Que a falta de confiança nas instituições de apoio e no sistema judicial não seja mais um muro – tantas vezes intransponível.

Autoria de:

Martha Mendes

Deixe o seu Comentário

O seu email não vai ser publicado. Os requisitos obrigatórios estão identificados com (*).


Últimas

opiniao