Opinião: A verdade não pode contradizer a verdade
A questão da informação, da contra-informação e da circulação/escrutínio/controlo de falsa informação está na ordem do dia, o que levanta naturalmente a perene questão sobre a distinção entre verdadeiro e falso. A verdade é um conceito a que se aplica com propriedade o comentário do Pe. António Vieira sobre as estrelas:
“O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: — estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem.”
Na existência da verdade assenta assim toda a comunicação humana, desde o amor à ciência, passando pela justiça, pela saúde, pela educação ou meramente pela mercearia. O facto de todos a verem e muito poucos a medirem traduz também a grande dificuldade em estabelecê-la em bases seguras. Conforme perguntava cinicamente Pilatos a Jesus: “O que é a verdade?” Esta questão de Pilatos aponta também, certeiramente, para as muitas “verdades” que circulam, cada um com a sua. Este relativismo tem sido frequentemente disfarçado de “tolerância”.
Contudo, o relativismo tende a ser profundamente intolerante: hoje, assim como nos tempos de Pilatos, quando várias “verdades” colidem, isso implica que vale a lei do mais forte. E, tal como os “machos alfa” das comunidades de predadores, estas “verdades” vão-se sucedendo no tempo, sem que importe muito se são “verdadeiramente verdadeiras”. O que é hoje pode já não ser amanhã.
Do outro lado desta caricatural barricada, os detentores da “Verdade-com-maiúscula” receberam por revelação, tradição, regulamentação ou “ex officio”, indicações absolutas sobre não menos absolutas “Verdades-com-maiúscula” que absolutamente transmitem. Na religião, na justiça, na saúde, na pedagogia, nas redes sociais e (sobretudo?) na burocracia, estes fundamentalistas místicos mantêm a sua Verdade sem que a mínima dúvida lhes ocorra e (Deus-os-livre!) se desviem um único milímetro da segurança infantil que apenas a “Verdade-com-maiúscula” transmite.
A este respeito, o papa Leão XIII dava alguns bons conselhos aos especialistas na interpretação da Bíblia que, no final do século XIX, se confrontavam com um manancial de informação científica que contradizia muitas interpretações bíblicas de longa data. Na encíclica Providentissimus Deus, de 1893, recomendava que tivessem em conta todos os argumentos, concluindo:
“Mesmo que a dificuldade, no final, não seja resolvida e a discrepância pareça permanecer, a disputa não deve ser abandonada; a verdade não pode contradizer a verdade, e podemos estar certos de que algum erro foi cometido, seja na interpretação das palavras sagradas, seja na própria discussão; e se nenhum erro desse tipo puder ser detetado, devemos então suspender o julgamento por enquanto.”
Recomenda-se assim uma atitude de profundo respeito por todos os argumentos, mas sem desistir nunca de encontrar a verdade, onde quer que esta se encontre. Aí reside a verdadeira (!) tolerância, disposta a suspender o julgamento enquanto as dificuldades não forem ultrapassadas. Ao mesmo tempo, o venerável pontífice fornece um racional teste do algodão, insuportável para os fundamentalistas de todos os quadrantes: “a verdade não pode contradizer a verdade”.


