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Opinião: O fim dos tarefeiros: ponto de partida, não de chegada

10 de setembro às 10 h01
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Acabar com o regime dos chamados tarefeiros no Serviço Nacional de Saúde (SNS) é, sem dúvida, uma medida justa. Durante anos, o país assistiu a uma anomalia difícil de sustentar: médicos contratados à hora, muitas vezes com remunerações incomparavelmente superiores, lado a lado com colegas vinculados a contratos rígidos e tabelas salariais datadas de outro século.

A desigualdade era tão gritante que corroía o espírito de serviço público. Corrigir esta distorção é necessário. Mas seria ingénuo acreditar que este gesto resolve o problema estrutural. Na verdade, é apenas um ajuste cosmético num sistema cuja doença vai muito além desta ferida visível.

O SNS não sofre apenas de um desvio circunstancial: é um organismo debilitado por décadas de má gestão, entraves burocráticos e hesitações políticas. A verdade é que, enquanto sucessivos governos proclamaram em uníssono a defesa do SNS, a prática foi outra: subfinanciamento, fecho de serviços, carreiras congeladas e uma incapacidade crónica de modernizar estruturas. O Partido Socialista, que mais alto se apresenta como guardião do modelo, foi simultaneamente quem mais o desgastou. E o PSD, quando chamado a intervir, nunca ousou a coragem reformista, preferindo manter o statu quo a arriscar acusações de “privatizador”.

À esquerda, partidos como BE, PCP ou Livre insistem num imaginário de saúde pública ilimitada, gratuita e sem restrições orçamentais, como se os recursos fossem infinitos. À direita, a Iniciativa Liberal e o Chega apresentam frequentemente propostas que reduzem a saúde a uma mercadoria, sujeita a lógicas de mercado sem rede de proteção. Nenhuma destas visões responde, de forma realista e equilibrada, às necessidades urgentes de um sistema que tem de ser sustentável, mas sobretudo funcional para quem dele depende.

A reforma necessária do SNS exige, antes de mais, descentralização e autonomia. É inaceitável que um hospital do interior precise de autorização centralizada para adquirir equipamentos básicos. Este modelo, centralizador e lisboeta, paralisa a resposta às populações e perpetua desigualdades. Experiências internacionais, de Espanha à Escandinávia, demonstram que dar autonomia às unidades de saúde não só responsabiliza gestores como estimula inovação.

Outro eixo fundamental é a valorização das carreiras médicas e de enfermagem. Enquanto países como França, Alemanha ou Canadá oferecem percursos claros, salários competitivos e incentivos para zonas mais remotas, Portugal continua a perder profissionais para o estrangeiro. Sem uma política consistente de dignificação das carreiras, qualquer discurso sobre reforço do SNS será mera retórica.

É igualmente indispensável reconhecer o papel complementar do setor privado e social. Em países como a Holanda ou a Suíça, a integração é regulada, transparente e funcional: o Estado define regras, financia e fiscaliza, e o cidadão é tratado com qualidade, independentemente da cor das paredes do hospital. Em Portugal, esta cooperação continua a ser travada por preconceitos ideológicos que colocam a política acima do doente.

No campo tecnológico, estamos ainda distantes de modelos de referência. Enquanto a Estónia centralizou num sistema digital acessível ao cidadão toda a informação clínica, e a Dinamarca investiu decididamente na telemedicina, em Portugal persistem plataformas redundantes, incapazes de comunicar entre si, que obrigam médicos e enfermeiros a perder horas preciosas em tarefas burocráticas.

A própria gestão hospitalar permanece refém de lógicas partidárias, muitas vezes entregue a dirigentes sem experiência clínica relevante. Nos países onde a governança hospitalar é mais eficaz, a presença de médicos e outros profissionais de saúde nos conselhos de administração é não apenas recomendada, mas prática corrente. Não se trata de transformar hospitais em empresas, mas de assegurar que quem toma decisões compreende a complexidade clínica e humana em causa.

E, por último, é necessário recentrar o sistema no que deveria ser o seu objetivo fundamental: o doente. Modelos como o sueco avaliam o desempenho hospitalar pelos resultados em saúde — qualidade de vida, taxas de complicação, readmissões evitadas — e não pelo mero cumprimento de metas numéricas. Portugal continua preso à lógica da estatística fácil: relatórios preenchidos, consultas contabilizadas, papéis carimbados. Mas o que verdadeiramente importa é se o cidadão que entrou no hospital saiu em melhor condição. O fim dos tarefeiros é, pois, um passo na direção certa, mas insuficiente. Sem uma reforma profunda, abrangente e corajosa, o SNS continuará a ser remendado ao sabor do ciclo político. E continuará a oferecer apenas uma verdadeira universalidade: a da espera interminável.

 

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1 Comentário

  1. Manuel Madeira Gonçalves Góis diz:

    Excelente artigo. Espero que quem está nos lugares de decisão, que o leiam, e que aprendam, porque neste pequeno artigo está dignosticada toda a doença do SNS. Os partidos políticos com as nomeações partidárias deram cabo do que de melhor havia na Europa, o SNS.

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