Bagagem d’escrita – Um país agridoce Índia – 2017

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A Índia é um país de mil cores e de outras tantas especiarias, não fosse isso que levasse os marinheiros portugueses a percorrer meio mundo para ter acesso a uma riqueza tão exótica que pouco depois estaria à venda nos mercados europeus. Para quem aqui vem, haverá um sabor que nos deixa um travo bem profundo não só nas papilas gustativas mas sobretudo no coração, aquilo que eu chamo de agridoce.
Este país oscila entre estes dois extremos. Junto a tanta riqueza acumulada, reina a pobreza geral, com gente faminta, sem qualquer luz ao fundo de um túnel a que possam chamar futuro. Deparo-me com vidas, e tantas que são, demasiadamente sofridas, algo que se espelha tanto no olhar vazio de quem carrega apaticamente tijolos acabados de cozer de uma forma tão mecânica que mais parecem seres autómatos. Falo também de gente doente, de aleijados que se arrastam sabe-se lá como pelas ruas, e nem vou referir-me aos que mendigam, que são igualmente muitos. Ao mesmo tempo, muitas destas pessoas encerram em si uma inexplicável, mas enorme paz de espírito interior, basta falar com eles e estranhar o seu estoicismo ao aceitar a sua condição social como se de uma fatalidade se tratasse, um fado ao qual não podem escapar. Talvez seja esse conformismo que suporta tanta desigualdade económica e social neste subcontinente.
As ruas enchem-se de gente que se esforça para viver dignamente numa sociedade que, ainda hoje, assume o sistema de castas pela qual se regeu ao longo de séculos. Aqui, o sol, quando nasce, não é igual para todos, que o digam aqueles que estão na base da desta pirâmide social, os dalit, ou “intocáveis. Junto deles, abundam os animais, com os quais convivem com a maior naturalidade, onde se destacam as vacas, as cabras, os cavalos ou mesmo os javalis, que várias vezes vi em estações de comboio, bem perto das pessoas, à procura dos mesmos restos de lixo que os macacos e os cães.
Vacas e cães estão por todo o lado, são omnipresentes neste país. Mas metem dó, sobretudo estes últimos. Todos eles são livres, mas a sua felicidade, para ser real, exigiria que tivessem o estômago mais aconchegado. Por outro lado, não deixo de reparar no respeito que aqui têm pelos animais, ou o modo como os tratam, não impondo a sua presença à da deles. Em troca, os cães são seres que muito raramente ladram ou são agressivos para as pessoas. Dão aquilo que recebem de nós.
Segundo as suas crenças religiosas, considerando-se todos filhos de um mesmo criador, concebidos para conviver e a interagir com eles. É isso que explica que uma estrada esteja quase cortada pelo trânsito, agudizando um engarrafamento já anunciado e, mais a frente, reparo que a causa de todos esses contratempos se resume a uma vaca deitada no meio do asfalto. A par de tudo isto, há que somar o incontornável problema do excesso de lixo que grassa neste país. Esta matéria multicolor de vários feitios e cheiros parece um animal doméstico, acarinhado e constantemente alimentado pelas mesmas pessoas que sentem que são filhas de um deus que as obriga a viver em harmonia com a mãe natureza, a quem devem respeitar e prestar culto.
Mas todo este quadro negro facilmente desaparece quando se dá lugar à boa experiência humana, quando comunicamos com esta gente que, por vezes, dá o pouco que tem a troco de nada. É uma bofetada de luva branca que levamos, e que nos faz rever o nosso conceito de desenvolvimento de um país.
Isto é a Índia, um país de sabores tão fortes quanto díspares em que o impossível é ficar-lhe indiferente. Ou se ama, ou se odeia.

 

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