Opinião – Os desejos são à dúzia

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Quando os gabinetes de comunicação anunciaram o concurso das Sete Maravilhas da Cultura Popular (e dos Doces, do Património e mais o que sete pudesse ser), com que o Portugal do Século XXI reinventou o certame salazarista da Aldeia Mais Portuguesa, há muito que a tradição tinha deixado de ser um traço particular da vida das populações. É que os povos são sensíveis à sedução. Para o bem e para o mal. E atendem com enorme facilidade à insistência das mensagens que voam e rastejam a grande velocidade nas ondas rádio e nos cabos de fibra ótica. Assim se explica que a caixa de sapatos com uma vela lá dentro dos bolinhos e bolinhós tenha sucumbido ao glamour das fatiotas do Halloween; assim se compreendem as folias do Carnaval Carioca em terras da Mealhada, naquele curioso contraste de barrigas ao léu com um frio de rachar. Não há mal nenhum na rendição dos traços a que chamamos tradição. O mal, a havê-lo, está no apagamento da memória dos costumes, na redução da compreensão humana a um recetor de campanha publicitária, na transformação de seres sociais em consumidores.

Há muitos anos que venho ingerindo, acriticamente, uma a uma, doze passas de uva assim que se chega ao zero da contagem regressiva que nos faz passar de um ano para o ano a seguir. Este ano procurei a razão desta superstição arraçada de moderno paganismo e socorri-me do tal cabo de fibra ótica que põe tanto mundo numa janela de 15’’ de luz. Há na origem deste costume gente reunida nas Portas do Sol de Madrid e, antes destes, a celebração dos prazeres da nobreza parisiense, ultrapassado já o susto da Revolução Francesa. Tudo histórias de contraste: de costumes, de riquezas, de um lado albardas, do outro selas, as primeiras para o filho de Maria, as outras para os de Herodes.

Já que de desejos se fazem as entradas no Novo Ano (que é outra forma de dizer futuro), direi as doze vontades me ocorrem, assim de repente, para dar sentido às doze passas que irei sacrificar no altar desta passagem: a primeira é pelo direito a ser-se jovem e ser livre e independente, desde o estudar e trabalhar ao habitar; a segunda, pelo direito ao salário bastante para o pagamento das contas das vidas dos comuns; a terceira, pelo direito à informação, sem donos nem censores; a quarta, pela substituição da esmola pelo rendimento do trabalho (num país em que se é pobre a trabalhar); a quinta, pelo salário em vez do subsídio para os que façam das artes profissão; a sexta, pelo regresso da democracia à “matéria” da educação – a construção coletiva no lugar do individualismo, a fraternidade em vez da mentoria; a sétima, pela extinção dos garrotes (da Dívida ao Código de Trabalho e ao Pacto Orçamental); a oitava uva-passa, pela valorização ambiental, pela consciência de que os humanos são, apenas e tanto, a parte de um ecossistema; a nona, pelo fim da discriminação social, que é o molde de todas as discriminações (a racial e a de género, entre outras mais); a décima, pela saúde dos mares contra a primazia do lucro; a décima primeira, contra o apagamento da história; a décima segunda, pela morte da violência económica e política, vorazes incubadoras do fascismo.

Desejos sem ordem nem hierarquia, doze entre os muitos que se acotovelam no território das vontades de abraçar o tal “mundo mais justo” (neste tempo de tantas ameaças). Com esperança, pois claro, de que algum dia lá adiante a felicidade possa vir a ser a mais universal das tradições. Feliz Ano Novo!

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