Da vida e da morte

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Se fosse hoje, e comigo fosse, escolheria viver. Mas sem ter mais dores do que aquelas que nos lembram sermos mortais. De tanto se vem invocando o “indivíduo”, arrisco mesmo reivindicar para a minha vida a tanta dignidade que o legislador foi capaz de dedicar à minha morte. E já que todos vamos exibindo as histórias de vida com que ilustramos a pertença à trincheira que escolhemos, aqui lembrarei a história daquele – que existiu e teve nome – que de tanta indignidade ter vivido nos dias que lhe foram finais, desejou ardentemente morrer. Viesse, pois, a morte livrá-lo das fezes a assar-lhe o rabo; do tratamento por tu, que tratadoras e tratadores confundem com intimidade, naquele buraco a que puseram o fantasioso nome de “lar”; do cheiro a desinfetante e urina da sala-de-estar dos ali-postos, onde o plasma exibia a visão do inferno na Terra – a Cristina de um lado e o Goucha do outro, berrando como se não houvesse amanhã. E antes não houvesse. Porque um amanhã assim é coisa que ninguém merece, e logo, dos sofrimentos, não se saberá qual o pior: se o andarilho, se a fralda, se o fedor, se a gritaria, se a bata da tratadora, se os tubos a que nos obrigam, se as dores, tantas dores, no corpo que começa a ceder à incomodidade da vida.
Não são, contudo, os sofrimentos todos iguais. Só os doentes poderão antecipar a sua morte, mas, mesmo assim, apenas se cumprirem determinados requisitos. “Liberdade individual” à parte, os projetos de lei que ontem foram aprovados têm mais de procedimento administrativo do que de “decisão livre e consciente”. A morte à hora marcada permanecerá, pois, privilégio do suicida bem-sucedido, porque os outros, aqueles a quem será permitido optar entre o sofrimento e a morte, terão de passar com distinção pelo crivo da própria vontade, reiterada as vezes que o legislador quiser. Virão depois dos especialistas e seus esclarecidos pareceres, já a “vontade individual” estará transformada numa espécie de alegação final perante o júri do tribunal das mortes.
Um deputado subiu à tribuna e disse: “não se discute aqui a dignidade individual seja de quem for. O que se discute é a questão de saber se um Estado que nega a muitos cidadãos os meios para viver dignamente lhes ofereça os meios legais para antecipar a morte pretensamente com dignidade. Todas as iniciativas legislativas assentam numa ideia de respeito pela autonomia e pela liberdade individual de pessoas em sofrimento extremo. Mas num país em que os cuidados paliativos só são acessíveis a 25% da população, e certamente que entre esses 25% não estarão os cidadãos menos favorecidos, qual é a liberdade que se oferece aos outros 75%?”.
Dias antes, dizia na TV o médico Álvaro Beleza: “seria interessante, e porventura até obrigatório, que a pessoa que pretende a eutanásia tenha cuidados paliativos e continuados. Antes da decisão. Isto é, que seja permitido, e até obrigatório que tenha essa possibilidade”, assim se reservando a que escolheu morrer a oportunidade de experimentar querer viver.
Sabendo-se dos interesses à espreita, já se está a ver a oportunidade de negócio que se abre ao empreendedorismo dos cuidados paliativos continuados, estrategicamente instalados no corredor da eutanásia. Os tais cuidados que quem manda no SNS não quer garantir. Na tal vida a que devemos ter direito antes de encararmos a morte.

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