Opinião: A maior forma de corrupção é o roubo da esperança

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O país vem sendo informado de vários casos de corrupção que mostram a ponta do iceberg sobre a realidade de um país que se habituou a não cumprir regras. A democracia não existe sem transparência, responsabilização e capacidade de escrutínio, pelo que aquilo que temos já muito pouco se assemelha a um regime democrático. Com tudo isso vem a diminuição da participação dos eleitores, a desconfiança, o total desrespeito pelos eleitos e a fatal ausência de esperança num futuro melhor. Pela primeira vez, desde há muito tempo, as novas gerações já não esperam viver melhor que as que lhe deram origem. Isso é absolutamente mortal para o regime e não pode passar sem uma enorme reflexão e iniciativa reformista.

Ora, aquilo que observa nos partidos do sistema é uma enorme preocupação com a sua sobrevivência. Não votam 70% dos inscritos, mas isso não causa a esses partidos nenhum problema, para além de lamentos de circunstância. Nenhum dos eleitos sente a sua legitimidade colocada em causa e muito menos considera que tem alguma responsabilidade na falta de interesse dos eleitores. Não. Os eleitores é que são uns malandros que preferem a praia e as festas em vez de cumprir a sua obrigação de votar.

Na verdade, o que temos em mãos, muito agravado pela perceção de corrupção generalizada, é um problema de confiança no regime democrático. A esmagadora maioria dos portugueses não se sente representado pelos eleitos e não considera que tem verdadeiramente a possibilidade de escolher. Não escolhe pessoas, nem políticas. As pessoas eleitas fazem parte de listas fechadas previamente escolhidas por diretórios partidários, os quais funcionam em circuito fechado, sem escrutínio, sem transparência e sem a participação da população. Os programas políticos são verbos de encher. Não significam nada e não são para cumprir. Ou seja, cada eleitor vota numa lista de pessoas e escolhe um texto que nada significa. O resultado é que muitos, perante a qualidade das listas e o conjunto de letras que constituem os textos políticos, preferem não escolher e nem aparecem para votar. Outros votam nulo ou branco. As eleições decidem-se pela dimensão das claques. É um sistema viciado que conduzirá ao desastre. Nenhum sistema político que não motiva a participação ativa dos cidadãos pode alguma vez conduzir a outro resultado que não seja o desastre. A história está aí para o demonstrar.

Nessa perspetiva, a regeneração implica reforma.

É para mim incompreensível que partidos reformistas estejam transformados em pequenos grupos de militantes indefetíveis que, no essencial, são incapazes de uma iniciativa de mudança, pois não têm a liberdade, nem a independência necessária, para, como dizia Francisco Sá Carneiro, “saber estar e romper a tempo, correr os riscos da adesão e da renúncia, pôr a sinceridade das posições acima dos interesses pessoais”, pois essa é a única forma de ser disruptivo.

Os cidadãos aguardam passivamente uma mudança ou, como dizia recentemente João Miguel Tavares no discurso so 10 de Junho, lhe ofereçam algo em que acreditar. Isso não é possível, porque o regime é servido por pessoas esgotadas, sem ideias, incapazes de se colocar em causa e que, no essencial, não querem nenhuma mudança, nem acreditam em nada. Vivem de lugares comuns, frases vazias e ideias sem profundidade. É tudo circunstancial e não tem a menor dimensão estratégica e civilizacional. Não está em causa um mundo melhor, a liberdade concreta, a igualdade e a dignidade de vidas das pessoas. Não está em causa um projeto político que tenha como objetivo construir um país e um mundo que se deseje. Mas antes, garantir posições defensivas para que tudo continue na mesma, trocar este por aquele, fazer mudanças de cosmética, arranjar duas ou três bandeiras que façam muito ruído e distraiam as pessoas, para que, no essencial, nada mude. E isso é que é para mim corrupção. Pelo meio, sim, há crime e roubo descarado do erário público. Há abuso e amiguismo. Há tudo aquilo que nos escandaliza. Mas tudo isso é um engodo. Na verdade, a maior forma de corrupção é um sistema que se organiza para garantir que nada muda. Um sistema que é especialista em trocar peões, que prontamente responsabiliza pelas ações de corrupção política e económica, para manter uma situação de total ausência de elevadores sociais e de falta de esperança num futuro melhor.

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