Opinião – Colete russo

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Olho para os coletes amarelos em França e não me revejo na forma, nem no conteúdo. Pelo menos, naquele que vou percebendo. Não vejo como pode ser considerado desculpável a revolta violenta ou a destruição de propriedade alheia. Nem como ainda haja quem considere que uma pessoa moderada ambiciona sair da União Europeia, NATO, Euro, aumentar despesa, desvalorizar moeda, etc. Não! As pessoas moderadas não ambicionam nada disso.
As famílias moderadas querem estabilidade, poder prever o dia seguinte, e, por isso, no meio dos seus afazeres, olham com espanto as notícias à hora de jantar enquanto a filha mais nova deixa cair mais um bocado de sopa em cima da mesa. E depois assumem a sua revolta interior perante as greves infindáveis ou os coletes amarelos. “Quem não chora, não mama!”, pensarão, para logo de seguida irem apanhar a roupa suja que o filho mais velho trouxe do jogo de futebol com os amigos. E conformam-se com a secreta esperança de um dia terem quem governe um país e não votos chorões.
Sobre esta matéria da instabilidade financeira e o que isso representa, recordo-me algumas vezes de um episódio no longínquo ano de 1998. No mês de Agosto desse ano, encontrava-me em Moscovo quando a bolsa russa, o mercado de obrigações e cambial entraram em colapso. Os juros sobre a dívida pública russa atingiram 200%, a bolsa teve de fechar 35 minutos depois de abrir e as acções perderam mais de 75% do seu valor desde o início do ano. Seguiu-se a desvalorização do rublo e o default da dívida. Tudo num só dia! Na véspera, fui-me deitar tranquilo, no dia seguinte não percebia nada do que estava acontecer. Isto foi há 20 anos atrás, eu não falo russo e não havia aplicações nos telemóveis para traduzir. Recordo-me bem que nessa altura enviar um fax era um tormento, tal como fazer uma chamada telefónica para o exterior.
Mas afinal, qual foi o impacto dessa crise financeira no dia-a-dia dos russos e, já agora, do meu? Da minha parte, acordei sem me aperceber do que se passava, e fui visitar a cidade. Notava-se um frenesim estranho e ao longo da Rua Arbat as casas de câmbio estavam muito animadas. A rua é longa e enquanto caminhava pude perceber que o dólar ia valendo mais a cada dez passos que dava. Algo não estava bem. Apercebo-me melhor do problema quando os rublos que tinha no bolso não chegavam para pagar o almoço. Quando quis pagar com cartão, fui informado que todas as transacções estavam suspensas, nem podia levantar dinheiro no multibanco. Recorri aos dólares que tinha guardados numa meia dentro da mala no quarto do hotel, que ia trocando à medida da necessidade, mas sempre com o alívio de saber que dois dias depois tinha avião assegurado para sair do país.
E quanto aos russos que, de um dia para o outro, tinham dinheiro na mão que nada valia e cartões bancários inúteis? Nunca mais me esqueço de ler a notícia da jovem estudante que no dia anterior tinha transferido todo o seu dinheiro para Inglaterra, onde iria começar a estudar na universidade.
Disse ela que ficou rica de um dia para o outro, mas a sua maior satisfação era saber que iria poder pagar as contas do aquecimento da casa da sua avó. No mesmo jornal, ao lado destas declarações, noticiava-se desde logo a previsão de quantas pessoas iriam morrer nesse Inverno por falta de dinheiro para pagar gás, electricidade, lenha ou mesmo vodka para se aquecerem e sobreviver ao frio. É no que pode dar a instabilidade. É o que as pessoas moderadas não querem.

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