Opinião – O político cool, pop e superstar

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Olá. Eu acho que não precisamos de apresentações. Já aqui escrevo há alguns anos e sinto que entre nós pode cair aquela deferência que por vezes só atrapalha. Se já me leu antes, sabe que não sou de deixar as palavras em hibernação. E por vezes isso tem custos (eu que o diga). Ainda assim o preço é justo.
Li há muito que “a lealdade pode não ser um bem, é que há-de chegar a hora em que já não há nada nem ninguém a quem servir”. Disse-o Le Carré. Não me recordo se se referia à lealdade a pessoas ou a ideais. Por isso falarei em ambos.
Assistimos com melancolia a um esvaziamento de ideias, conteúdos e pensamentos de uma parte dos dirigentes políticos, alimentando soundbites que nada expressam nem contribuem para a construção e para o aperfeiçoamento do sonho de uma sociedade melhor. É com mágoa que os vemos emergir em discursos redondos, sem arestas, sem vértices, sem expressão, dizendo vulgaridades, escrevendo “verdade” no plural, aproveitando a alavanca do Facebook para cumprir a ânsia de um estrelato que ganhou uma cadência sem precedentes. Acontece por todo o mundo. Uma imagem psicadélica de luzes e smiles incidindo sobre um ideário vazio… Palavras para quê? O político estrela, cool, pop e superstar quase não precisa de dizer nada. Há até quem o aconselhe a estar de boca fechada para vencer eleições.
Com isto, definha-se conceção e o pensamento e, de certo modo, certifica-se a tese do fim das ideologias que surgiu mais emblematicamente na literatura norte-americana dos anos 50 do século anterior, sugerindo um esbatimento entre a direita e a esquerda, dado que ambas as correntes se deslocaram para o centro à procura de consenso aproximado que garanta uma maior mancha de eleitores.
O termo ideologia não é assim tão velho. Foi cunhado na efervescência da revolução francesa pelo filósofo Destutt de Tracy, quando procurava implementar uma ciência das ideias como modo de chegar à verdade que não fosse pela fé ou pela autoridade. Poucos anos depois, Karl Marx acentuava algum pragmatismo ao sublinhar que, ainda que as ideologias sejam proclamadas como verdadeiras, elas mascaram interesses particulares. Certo é que a ideologia acabou por dar alguma arrumação ao mundo, encaixando e atribuindo significados às pessoas e às correntes. À luz das ideias, permitiu construir visões orientadoras de sociedades conduzidas por políticas que têm no seu horizonte sonhos e utopias. Não apenas políticas de circunstância, mas iluminadas por um sentido partilhado.
O que dá força à ideologia, para que não se extinga, é a paixão dos que a defendem e a mobilização das emoções que geram. Por terem deixado desvanecer a persuasão até se enclausurarem no canto silencioso do mundo, as mais vetustas ideologias foram perdendo o seu fulgor. Hoje, poucos espíritos sérios acreditam que o Estado se deve manter à margem da economia, que o fim do capitalismo resolve a fome, ou que a democracia se exerce sem um governo.
Tem crescido a corrente defensora de que o fim da ideologia não representa necessariamente o fim da utopia, e que a sua ausência pode até permitir enfrentar problemas concretos sem o corpete da justificação assente em respostas prontas e pré-confecionadas.
Nesse sentido, pergunto, não será exagerado encarar o fim da ideologia como uma catástrofe que conduz ao caos o nosso sistema-mundo? Podemos dispensar a ideologia com a garantia de que os políticos que tomam opções em nosso nome o fazem tendo como horizonte a utopia de uma sociedade mais digna, mais justa e mais solidária, exercendo com ética o poder que lhes dispensamos? Ainda que a procuremos, essa imagem não está visível. Encontra-se indecifrável por debaixo do disfarce da personalidade carismática que a comunicação mascara.

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