Tenho dentro de um baú de vime claro com fivelas de couro castanho-escuro uma caixa fechada a cadeado onde guardo dezenas de cassetes, bilhetes e cadernos de capa rija.
Contém notas soltas, memórias suspensas e confidências nunca reveladas do tempo em que fui jornalista político. Não gosto de abrir aquela caixa de pandora confiada ao pó do tempo adormecido. O que lá-vai-lá-vai e a história não pode ser feita de impressões vagas de quem descobre a porta entreaberta dos vislumbres e sombras espiadas.
Todos os jornalistas recorrem a estes arquivos como auxílio para as suas peças de fundo. Registo verdades indizíveis, ocasos, embustes desmascarados, tramas, tantas intrigas, provas e confissões, boatos e declarações desmentidas. Estão encerradas. E pronto.
No meu caso tudo começou à volta daquela rotunda lisboeta com o Marquês de Pombal ao centro. Numa das suas arestas redondas ainda há um letreiro que dá nome à redação onde comecei a aprender jornalismo. O Diário de Notícias é (ou foi) um bastião inigualável. Numa das minhas primeiras saídas para a rua, desci a Avenida da Liberdade com o Martim Silva.
Embora não tenhamos idades muito diferentes, ele já por lá andava há mais tempo. Entrámos numa das suas transversais e parámos numa velha papelaria de esquina. Ele pediu dois pequenos cadernos, de capa dura, que faziam lembrar os livros dos merceeiros.
Entregou-me um e dali mesmo partilhámos um táxi para destinos diferentes. Eu fiquei no Saldanha, onde Ferreira do Amaral ia inaugurar a sua sede de candidatura à Presidência da República. O Martim seguiu para o Parlamento. Nessa noite fui ao Snob, bar de culto e de inconfidências que fica no nº 178 da rua do Século. Lembro-me das impressões que escrevi na primeira folha quando ia a caminho de casa.
Lembro-me, embora não as deva publicar, pois a revelação controversa faria lanhar o pacto de lealdade jurado na defesa do ethos do jornalista. Essa é uma raça de faro afiado, em combates cada vez mais solitários pela verdade, em cruzadas quase sempre estoicas e inglórias, mas com honra.
O jornalismo, o autêntico, é isso: é honra – o que implica que o jornalista se abstenha de fazer revelações deontologicamente ilegítimas sobre outras pessoas, sabendo distinguir as três esferas de reserva dos cidadãos: a íntima, a privada e a pública.
O polémico livro do ex-diretor do Expresso e do Sol, José António Saraiva, intitulado “Eu e os políticos”, que em escassos dias atingiu a décima edição, expõe perniciosamente pormenores da vida de figuras públicas, devassando a sua intimidade, usando alegadas transcrições a partir dos seus diários, fazendo revelações torrenciais, desenfreadas, com a astúcia das palavras que velam serenidades desconcertantes, porque são aparentemente cálidas mas tenazmente desordeiras.
Por entre dissertações vagas e sem interesse, cujo lugar é nas publicações cor-de-rosa de pseudo-famosos de quinta categoria, que raiam o exercício de voyeurismo cruel.
Quando desfia um rol de confidências sobre personalidades políticas, Saraiva vale-se muitas vezes da sua anterior condição de jornalista, que lhe permitiu obter a informação divulgada. Noutras passagens, desvela situações pontiagudas a partir de conversas tidas com personalidades que já morreram e que não podem por isso fazer o eventual contraditório.
Lendo o livro no seu conjunto, saltando as passagens inúteis e de mau gosto sobre alguns protagonistas políticos, fica a sensação de que pontifica na imodéstia de Saraiva o pensamento de que os grandes factos sobre a política contemporânea lhe passaram pelas mãos.
Poderíamos questionar sobre o contributo histórico das revelações. Ou seja, daqui a 50 anos, o que vale saber que fulano A ou fulano B tiveram um caso amoroso? Assim sendo, estaremos diante de um livro com intuito histórico ou cariz destrutivo?
A resposta à pergunta essencial deve ser assim colocada: Que razão levou Saraiva a publicar um livro de confidências obtidas a partir do privilégio da sua atividade jornalística? A resposta deu-ma o próprio, numa entrevista concedida em maio de 2012: “Porque (os escândalos) saem da rotina, falam de desgraças, lançam pessoas na lama – e tudo isso atrai”.