Opinião: Os médicos só querem ser médicos

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Depois de mais uns dias arrasadores em que a procura de cuidados é muito superior à resposta que conseguimos dar, ficam as reflexões de uma médica sobre a Medicina hoje em Portugal.

Temos de pensar, claramente, o que queremos de um médico. Depois, o médico deverá simplesmente desempenhar as suas funções e tarefas. Eu diria que um médico deveria desempenhar uma atividade essencialmente de diagnóstico e tratamento, baseado na melhor evidência e também de comunicação e compreensão. E é isso que se tenta preparar nas escolas médicas. O meu dia-a-dia, porém, é uma luta constante para tentar executar estas tarefas. Não é raro alguém ser incentivado a ir ao médico pedir uma declaração, um papel, uma justificação, um relatório, para todo o tipo de fins. Cada vez mais é solicitada a palavra do médico para os mais simples dos processos e medidas que ninguém quer simplesmente resolver ou assumir.

Faria sentido mudar este paradigma: o médico não é um certificador mas um clínico, pelo que as decisões laborais e sociais não precisam de opinião médica na maioria das vezes. Muitas transcrições e relatórios protocolizados poderiam ser simplesmente feitos por administrativos, ainda que revistos pelo médico, quando necessário. E muitas destas tarefas poderiam ser organizadas de outra forma – com claro benefício para todos – como a questão das declarações e baixas para justificar subsídios a pessoas que têm problemas sociais e todos os relatórios que isso implica, sendo que essas tarefas deveriam ter uma resposta nos recursos humanos da área social.

Isto já sem falar no papel de informático que o médico também desempenha, ao passar muito do seu tempo colado ao écran dos computadores para que tudo seja registado e os doentes encaminhados dentro dos circuitos da Saúde. Em algumas tarefas o computador é facilitador mas, em muitas outras, temos noção de que nos consome muito tempo. Tempo, esse, em que poderíamos, deveríamos e queríamos estar a olhar para os doentes e não faz sentido que, com a evolução informática que existe, ainda tenhamos mais esse entrave.

A falta de recursos humanos na Saúde, como administrativos e assistentes operacionais, ainda aumenta mais a carga de trabalho dos médicos que, muitas vezes, têm de tratar do atendimento telefónico, marcações de consultas, encaminhamentos vários, respostas a dúvidas funcionais do sistema e até limpezas e arrumação de material. Já sem falar na falta de enfermeiros. Tudo isto põe em risco a saúde das populações.

Subjetivamente, tenho noção de que estas tarefas ocupam muito do meu tempo. Um estudo já publicado no BMJ Open (de Granja, Ponte e Cavadas) dizia que os médicos de família passam 33% do tempo a fazer tarefas não assistenciais. Na Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos vamos fazer um trabalho para tentar quantificar o tempo com tarefas não médicas a nível hospitalar. Será fácil evidenciar o dinheiro que é gasto desnecessariamente nestas tarefas e quantificar o tempo que poderia ser despendido com as pessoas e na melhoria da assistência médica em vez de com burocracias.

Porque as tarefas de diagnóstico e terapêutica são claramente feitas entre os intervalos da chuva, com a cabeça pouco fresca de tantas outras complicações burocráticas. E a comunicação e empatia fica sempre prejudicada e arrumada para um lugar recôndito. Naturalmente, as pessoas sentem falta desta última componente – que tem elevado potencial de melhoria de qualidade de vida – e, naturalmente, recorrem muitas vezes a terapias “alternativas” que não provaram ter mais do que este efeito ligado à relação humana e seu efeito placebo positivo, que, ironicamente, agora se incentivam e comparticipam pelo Estado.

Devemos ter um país rico, sem dúvida, onde queremos que os médicos, no sistema público de saúde, cumpram tarefas que deveriam ser feitas por outros profissionais, e acabamos por deixar as tarefas altamente qualificadas e eficazes para último, com sérias consequências nas carteiras e na saúde (e vida) das pessoas. E ainda incentivamos outras “medicinas”, que ficando libertas de outros “entraves”, acabam elas por colmatar uma parte do que deveria ser tarefa do médico e, estranhamente, não se deixa o médico fazer.

Por isso apelo a quem nos governa: é urgente rever as tarefas não médicas que são cada vez mais deixadas para os médicos. Deixem os médicos fazerem o seu trabalho para bem das populações. Deixem-nos ser médicos.

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