Opinião – À porta do quarto escuro

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Manuel Rocha

Manuel Rocha

 

Pouco a pouco vamos saindo do quarto escuro. Ao sopro da democracia parlamentar o castelo de cartas assustou-se, e deixou mesmo cair alguns dos seus valetes: os Bavas, a quem nem a comenda valeu; os Granadeiros, croupiês do empreendedorismo; os Salgados, ladrões de euros e de vidas (tão recomendados que eles foram pelo Presidente e por Marcelo-candidato); e os números do sucesso económico, que era, afinal, um cenário de cartão em dia de chuva. “Portugal está melhor”, a frase da campanha da PaF, desmente-se todos os dias a golpes de Banifes.
Expiámos a culpa de ter vivido acima das nossas possibilidades, mas não era preciso. Não havia culpa nossa, e vê-se agora – porque saber sempre se soube – que aqueles que viveram à custa das nossas impossibilidades nem sequer foram postos no canto da sala, orelhas de burro enfiadas no toutiço. Pelo contrário! Passos e Portas ofereceram-lhes os nossos feriados, levando o castigo ao terreiro da Festa como quem mancha de vergonha a celebração da nossa memória colectiva. E aumentaram-nos o tempo de trabalho, como quem oferece o tempo da família, sacrificado, no altar da velha exploração dos braços; como quem mata, injusticeiro, o tempo do trabalho que é, entre os portugueses, o lugar da dignidade.
Do corpo putrefacto de ainda há pouco, chegou a soar o grito de “não estraguem” – desta vez a Escola portuguesa. Percebe-se o alarme. Como nunca desde o 25 de Abril, instalava-se nas vidas das nossas crianças o modelo do “antigamente é que era bom”. Que bom, de novo o exame da quarta classe, e os outros todos, autênticas agulhas ferroviárias nas vidas das nossas crianças, salomão sacristão tu és polícia tu és ladrão; restaurou-se o poder dos velhos colégios de farda e apelido de família; inventou-se uma PPP para o inglês escolar, de duvidosa eficácia pedagógica mas claro proveito empresarial; estabeleceu-se a prioridade absoluta do português e da matemática nas aprendizagens, o escrever-o-nome-e-fazer-contas do século XXI; restaurou-se a ditadura da “nota”, da “média”, do sucesso escolar enquanto alinhador de “inteligências”, e respectivo foguetório de quadros de mérito. Quais Artes, qual História, qual Vida! Só ficou a faltar o regresso da memorização da rede ferroviária, mas apenas porque das linhas e ramais pouco mais resta do que crateras, e vergonha.
Claro que de trás já vinham sinais preocupantes, como o do estreitamento da vida democrática nas escolas, com a reintrodução dos “directores” a quem se encomendou o regresso do tique autoritário (a que Sócrates, o visionário da asneira, chamava “liderança forte”); como a fúria avaliativa dos docentes, com que se detinha o curso da carreira, mesmo que à custa do conforto escolar das nossas crianças e jovens. Crato bem soube aproveitar o embalo, mas já passou. Agora são outros dias, nem todos tão diferentes dos dias maus, mas mesmo assim mais esperançosos. Saibamos, pois, não esquecer a sensação das mãos doridas pela palmatória das inevitabilidades, e prossigamos o caminho que tão bem nos é sugerido pela Constituição.
Na televisão aparece muitas vezes, há tanto tanto tempo, um homem igual aos mestres-escola de que ainda há pouco nos livrámos. Vai a correr para o estrado da República, vestido de contradições, e leva na pasta de couro, que lhe ofereceu o padrinho, a tal velha palmatória.

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