Opinião – O soro da verdade

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Bruno PaixãoBruno Paixão

“A política é a arte de mentir tão mal que só pode ser desmentida por outros políticos”. Mia Couto, Um rio chamado tempo

Se fosse há uns meses, Maria Luís Albuquerque, ministra das Finanças, teria simplesmente “faltado à verdade”, ou dito uma “inverdade”. Mas hoje, sabemos, Maria Luís Albuquerque “mentiu”. Os contratos swap têm servido para muitas coisas (até para nos empobrecer ainda mais), mas também para mostrar a crispação que tombou sobre o discurso político. O que não é necessariamente mau…

Num debate parlamentar, em 2008, o líder comunista Jerónimo de Sousa, dirigindo-se ao então primeiro ministro José Sócrates, disse: “Eu não lhe chamo mentiroso. Mas digo-lhe que faltou à verdade”. Em maio de 1994, também Pacheco Pereira criticou Cavaco Silva por este alegadamente ter faltado à verdade ao referir que não ouviu o duro discurso do Presidente Mário Soares, por ter ido com a família numa excursão a Mértola. Um jornal nacional escreveu: “inverdades do primeiro-ministro”.

Muitas “inverdades” ocorreram antes e muitas mais aconteceram desde então, ocupando o espaço lexical da mentira. No glossário político, a expressão “mentira” estava adormecida. No mais satírico do seu registo, o humorista Ricardo Araújo Pereira pôs ironicamente o dedo na ferida: “os políticos não mentem, dizem inverdades”.

Mas eis que chega Maria Luís Albuquerque. E com ela afugenta-se a “inverdade”. Com ela regressa a mentira. E a política afigura-se assim mais frontal, abandonando as frases polidas que trazem lenço branco na lapela. Em vez de um falso “faltou à verdade”, agora assume-se a verdade da “mentira”.

Já não nos interessa o que diria Maria Luís Albuquerque no confessionário, depois de tomar o soro da verdade. Porque as mentiras já são mais ou menos aguardadas. Hoje, os políticos podem mentir, porque na realidade ninguém se importa. Os cidadãos já não se indignam, sentem-se anestesiados, apáticos e impotentes. E poucos são os que se comovem ao ouvir mentir com tanta sinceridade.

Voltemos a Maria Luís Albuquerque e aos contratos swap. Quando perguntaram a David Livingstone Smith, diretor do Instituto de Ciência Cognitiva da Universidade de New England, se quando alguém diz que não sabe de nada sobre um facto em que todas as evidências provam o contrário, isso é mentir, ele respondeu: “qualquer coisa feita para iludir é uma mentira. Omitir-se ou inventar um padrão técnico para se explicar sobre algo, é mentira, sim. As pessoas usam essas coisas apenas para escapar e, efetivamente, escapam”.

Grave será se a ministra acredita no que diz, mesmo com as provas documentais a desmenti-la. De resto, nada de mais. Até porque, de alguma forma, todos mentimos, e quem diz o contrário mente.

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