“Grande parte das associações de bombeiros está em rutura financeira”

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Foto Luís Carregã

Jaime Soares, novo presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, pede celeridade nas negociações sobre o transporte de doentes não urgentes pelos bombeiros. Se não for alcançado um entendimento, responsabiliza “exclusivamente o Ministério da Saúde” pelas consequências para os doentes.

Toma posse num momento particularmente difícil para os bombeiros, agravado pelo atual cenário de crise.

Diria que é uma tarefa muito complicada, árdua, mas nós, com arte e engenho, saberemos ultrapassá-la. Difícil não porque a matéria-prima não seja da melhor qualidade – as mulheres e os homens que fardam de soldados da paz em Portugal mantêm bem firmes os sentimentos da solidariedade e humanismo e aquilo que importa para a sua atividade de socorro à populações, numa afirmação permanente de cidadania ativa e com espírito de voluntariado genuíno. Mas por mais difíceis que possam parecer as tarefas, não nos metem medo, porque temos um exército de paz que estará comigo, em todos os lados em que seja preciso discutirmos e encontrarmos soluções adequadas para servir mais e melhor as populações, que confiam em nós.

Sem a tal crise de voluntariado, que alguns dizem existir…

A crise de voluntariado só existe nas mentes atormentadas e de muitos que têm governado o nosso país, que não têm tido a coragem de produzir legislação que assuma o voluntariado como um dos valores mais importantes da sociedade. Ter uma estrutura de proteção civil da dimensão da que existe em Portugal, com base no associativismo e voluntariado, com uma prática altamente profissionalizada, é caso único no espaço universal. Esta realidade devia ter merecido um estudo sociológico aprofundado, para ver o que importa a um país ter uma ferramenta destas. Sem pedir nada para o bombeiro, entendo que deviam ser criados incentivos ao voluntariado, que existem na maior parte dos países.

Mas isso não tem acontecido.

Nos últimos anos os poderes instituídos criaram legislação que põe em causa o recrutamento de voluntários, porque impede que qualquer cidadão possa estar numa estrutura de bombeiros como auxiliar nas mais variadas atividades – médico, engenheiro –, por menor tempo do que o exigido. Se não fizerem por ano as horas determinadas passam para um quadro de reserva e no ano seguinte têm que sair. Quando, afirmo, oito horas de trabalho de um bombeiro correspondem a mais de uma semana de trabalho de qualquer cidadão, devido à pressão a que são sujeitos e aos traumas e marcas, das situações dramáticas a que assistem, que ficam para toda a vida. E se as minhas palavras precisarem de mais esclarecimentos dá-los-ei, fazendo comparações com as estruturas profissionais, que são de grande qualidade e das melhores que existem, mas têm os seus salários, os seus apoios. Os bombeiros voluntários não deixam de fazer exatamente a mesma coisa, resolvendo problemas da sociedade a custos reduzidos.

É nesse sentido que defende a atualização do Estatuto Social do Bombeiro?

O Estatuto Social do Bombeiro dava pequenos incentivos ao voluntariado. Por exemplo, cada quatro anos de serviço efetivo de bombeiro no ativo davam direito a um ano de reforma, claro que com o pagamento respetivo para a Caixa Geral de Aposentações. Mas acharam que era tanto que reduziram a percentagem de 25% para 15%. O estatuto social tem que ser revisto, bem como toda a legislação.

Os bombeiros voluntários têm um papel importante no transporte de doentes.

Temos o socorro em emergência, atividade em conjunto com o INEM, em que deve ser melhorada a coabitação entre as duas estruturas. Esta é uma das negociações que tem que ser feita imediatamente, porque a intervenção no terreno na maior dos casos é conjunta e tem que ser entendida à dimensão daquilo que é a sua responsabilidade no processo.

A definição do transporte de doentes não urgentes em ambulância vai ser uma das suas próximas batalhas?

De um momento para o outro, por uma questão economicista, sem qualquer negociação com aquele que é o parceiro fundamental nesta área, os bombeiros voluntários assistiram a uma redução exponencial das solicitações para transporte de doentes não urgentes – 30, 40, 50% ou mais de diminuição, com prejuízo de muitos doentes que não têm condições financeiras e outras para se deslocarem aos hospitais – e vêm que para continuarmos a fazer este serviço tínhamos que ser nós a subsidiar o SNS. Isto porque a taxa de saída paga dava um prejuízo de mais 150% em relação ao trabalho prestado. Para além de serem pagos com atraso, os bombeiros recebem 0,48 cêntimos por quilómetro, valor que não é alterado há dois anos. E o gasóleo, os combustíveis, têm mantido o preço? E porque é que há entidades que têm direito a gasóleo com custos bonificados e os bombeiros, para salvar vidas e haveres, têm que pagar o gasóleo como qualquer cidadão comum?

A Liga defende a revisão das taxas de saída nos transportes de doentes não urgentes, nas negociações que estão a decorrer?

Grande parte das associações de bombeiros já está em rutura financeira, em falência técnica. Não têm dinheiro para pagar os combustíveis, os recursos humanos, e mesmo assim tentam continuar a prestar os serviços. São situações que os portugueses têm que conhecer. Estamos disponíveis para nos adaptarmos às novas realidades, mas isso não pode pôr em causa a nossa existência, a nossa continuidade. Vamos defender a revisão de todo o sistema de transportes na área da saúde. Queremos que sejam analisadas as questões das taxas de saída, tempos de espera, e à posteriori analisados os custos reais dos dos combustíveis e da manutenção, e adaptados ao preço do quilómetro. Esta situação não pode manter-se, porque está em causa a subsistência dos corpos de bombeiros e levará fatalmente, como já tem vindo a acontecer, à venda de viaturas dos bombeiros e despedimentos. Já foram despedidos 300 funcionários e a manter-se a situação teremos que despedir mais 700.

Um dos desafios no novo cargo será fazer entender o papel dos bombeiros, que em muitos locais continuam a ser o único socorro para a população?

O grande e principal agente da proteção civil é o bombeiro. Porque é que nos tratam assim? O que pretendemos é ser ressarcidos à dimensão do trabalho que prestamos à sociedade, não para nos pagar a nós mas para permitir que as estruturas instaladas funcionem. Hoje dentro de uma associação de voluntários já há bombeiros profissionais, porque com a evolução da sociedade o socorro não pode ser feito ao toque da sirene, mas ao milionésimo segundo. Tem que haver pessoas preparadas, mas serão 5, 7 ou 8% do total do pessoal, os restantes são voluntários. Nós não somos contrapoder, mas reafirmo que, neste caso da saúde, se houver rutura e não se concretizarem as negociações nós responsabilizamos exclusivamente o Ministério da Saúde por esta situação, não os bombeiros.

A haver rutura fica em causa a subsistência de corporações de bombeiros?

O Governo é que tem que ver o que mais interessa ao país e se não o fizer terá que assumir as responsabilidades. Mas não acredito que as pessoas sejam autistas à dimensão de não entenderem o que é importante para o país.

Mas se não entenderem?

Encerrarão muitas associações de bombeiros. Não aguentam. Não há paliativos, nem que venham com antibióticos, já que temos andado sempre com aspirinas, e de fraca qualidade.

“Desengordar” a Proteção Civil

Tem sido crítico em relação à estrutura de comando da Proteção Civil.

Mas qual comando? É um comando que não comanda o exército, a GNR, a Marinha, a Força Aérea, o INEM, a Cruz Vermelha, os Sapadores, e a maior parte destas estruturas dependem do Estado e são pagas pelos dinheiros do Estado, e quer comandar os bombeiros voluntários, que são das associações, e os municipais, que são das câmaras. Não se deduza que os bombeiros não querem estar num comando operacional ou integrado. Mas em parte nenhuma do mundo a Proteção Civil é comandar, é sim coordenar. Como há 30 anos atrás, como há meia dúzia de dias atrás, são os mesmo que estão no terreno e resolvem os problemas, só se introduziram a tais elites. E é contra isso que nos vamos bater. Enquanto uns vivem principescamente à mesa do rei, os que estão cá em baixo têm que viver com rações de combate, algumas delas já bolorentas e intragáveis. São estas situações que queremos combater.

Rever o sistema de financiamento das associações de bombeiros é outras das questões prementes?

Está tudo interligado. Uma das nossas preocupações é negociar com o Governo para que através do Orçamento de Estado seja considerada uma verba para o financiamento dos corpos de bombeiros. Mas não queremos aumentar a despesa do Orçamento de Estado. Queremos avançar com a tipificação dos corpos de bombeiros, a definir com base no município, para que se saiba o que é preciso em cada concelho para a atividade de proteção civil e transferir para ali o que é necessário, diminuindo os custos de funcionamento do sistema. E para isso temos também propostas concretas, com soluções. É preciso que o Governo assuma de uma vez por todas o desengordar das estruturas do Serviço Nacional de Proteção Civil, das suas estruturas intermédias, como a Autoridade Nacional de Proteção Civil, os comandos distritais, os GIP da GNR, os “canarinhos”, que são necessários mas estão subaproveitados, e todo um conjunto de situações subjacentes. Queremos manter as estruturas funcionais com uma operacionalidade de 100%, mas temos consciência que estas estruturas, a nível do Serviço Nacional de Proteção Civil, estão cheias de generais sem tropas e as elites consomem tudo aquilo que deveria ir para o terreno. Diria que tem que se redefinir toda a estrutura do Serviço Nacional de Proteção Civil e os seus gastos supérfluos e trazer para os que estão no terreno o que efetivamente lhes falta.

Que retrato faz das instalações e equipamentos dos bombeiros?

Há quartéis de bombeiros muito bons, mas se o poder central tem ao seu serviço cerca de 55 mil mulheres e homens tem o dever de lhes dar o mínimo para estarem devidamente resguardados. Mas ainda há más instalações e temos um exemplo gritante em Coimbra, onde os poderes, estatal e municipal, têm que entender-se para rapidamente resolver o problema do quartel dos Bombeiros Voluntários de Coimbra. Refiro este e podia referir outrosl. Quanto aos equipamentos, muitos são adquiridos com a percentagem maior de investimento das associações. Depois socorremo-nos de viaturas estrangeiras, que já têm 20 anos mas connosco parecem novinhas, e também temos algumas com 25, 30 anos de serviço, mas bem conservadas. Mas os custos de manutenção são muito pesados. O poder andou cinco anos para entregar 95 viaturas e ainda faltam algumas. E estão entregues aos corpos de bombeiros por alocação, não são da sua propriedade plena. E agora se queremos viaturas temos que nos candidatar ao QREN, e caberá às associações de bombeiros, porventura aos municípios, pagar a comparticipação nacional. Só há uma palavra para definir este estado de coisas: ridículo.

Versão completa na edição impressa de 7 de janeiro do DIÁRIO AS BEIRAS

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