A ordem do caos

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É sempre assim!” – repetia o velhote que na mesa do fundo do café do bairro bebia “minis” atrás de “minis”. A cada golo de cerveja, lambia os beiços e, como se de um ritual se tratasse, garganteava: “é sempre assim!”. Já os demais circunstantes se interrogavam, perplexos. Eu adiara a saída do estabelecimento, curioso com o desfecho do repetido anúncio, se desfecho teria, apesar de já ter há muito ter terminado o café. “É sempre assim!”, insistia o velhote que apesar de persistir no propósito de matar a sede não evidenciava sinais de embriaguez. Num canto oposto do pequeno café, um jovem casal distraíra-se dos seus jogos de paixão como se a frase projectada tivesse explodido entre os dois, e ria-se baixinho, cúmplice.

Olhava para o relógio, os afazeres não me concediam muito mais tempo. Desagradava-me não assistir ao desfecho, pelo que decidi provocá-lo. Mas eis que a dona do café, mais rápida, se antecipou: “Ó Senhor Carlos, o que é lá isso que está para aí a bufar há um tempão?” “É sempre assim, sim senhora! Não têm ouvido na televisão que isto está um caos! Que vem aí o FMI? Que não vai haver subsídio de Natal e que vão cortar nos salários dez ou mais por cento? Não ouvem esses anúncios todos? Que o país está pior que a Grécia? Que está à beira do abismo e pronto a dar um passo em frente? Que chegámos ao caos total e só com imensos sacrifícios dos pobres é que o país se salva? Não ouvem?” E um café inteiro respondeu: “Sim”. O casal de namorados já não ria, indeciso com a reacção a ter. “Ouvem ou não?” E o “sim” repetiu-se, como se estivesse ensaiado. Desta vez fui mais rápido que a Dona Rosa: “E então? É por isso que diz que é sempre assim?” “Claro, homem, e é logo você que pergunta, valha-me Deus! É sempre assim. Anunciam o caos para chegarem aonde querem. Anunciam a desgraça para tramarem as pessoas. Dizem que cortam nisto e naquilo, para irem preparando o Zé Povinho e cortarem o que podem. Anunciam 100 para conseguirem 10. O esquema é velho. E pega… Essa é que é manha! Depois há sempre quem diga que até podia até ser pior, “vá lá levam os anéis, ficam os dedos, cortam um dedo ainda tenho os outros”. O pior é que não se dão conta que se ficam sossegaditos lhes levam os braços, as pernas e a alma se for preciso. É sempre assim!”

Na sala o silêncio caíra súbito como uma tempestade de verão. Por breves segundos, todos pareciam reflectir. Foi a rapariga apaixonada que quebrou o silêncio, em voz baixa que todos ouviram: “o homem tem razão!” E logo toda a sala descarregou em comentários de apoio. Uns: “mas que grande verdade!” Outros: “é mesmo isso!”

“É sempre assim!”, atalhou o velhote, para encerrar a prelecção: “Não acordem enquanto é tempo que vão ver como elas mordem!”

No canto do café, o rapaz apaixonado voltara a mergulhar nos olhos da rapariga em declarações de amor, mas teve ainda tempo para confessar: “o velho sabe o que diz!”

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