Opinião: Tempos de reflexão

Os cristãos atravessam neste momento o período da Quaresma, de preparação para as festas da Páscoa. É um tempo particularmente dedicado à reflexão e à reconciliação consigo próprio e com os outros e, da perspetiva dos crentes, com o Deus-Amor que a todos une.
Dificilmente se poderia encontrar um tempo mais adequado para a realização de eleições. Tal como os cristãos na Quaresma, também os eleitores são convidados a pensar não apenas em si, mas também no interesse comunitário. Em tempos de globalização, esse interesse excede em muito as comunidades locais, seja a nível de freguesia, concelho ou mesmo a nível nacional. Conforme têm alertado muitas vozes prudentes, o nosso destino comum está neste momento profundamente ligado a acontecimentos fora das nossas fronteiras (como a guerra na Ucrânia, onde está em jogo o destino da Europa) ou até fora de quaisquer fronteiras, como a emergência climática. Neste contexto, as próximas eleições legislativas passam a ser uma mera antecâmara das eleições verdadeiramente importantes de 2024: as eleições europeias que decorrerão no princípio de Junho.
O debate público a que temos assistido tem sido porventura centrado em demasia no nosso pequeno umbigo, lembrando o cartoon (de Quino) que, ao comparar o tamanho aparente de um dedo próximo do olho com o de uma árvore distante, conclui que o dedo parece muito maior porque é seu e lhe interessa muito mais do que a árvore. Ao ouvir o elencar das desgraças nacionais, fica por vezes também a ideia de uma estranha falta de memória coletiva. Cumpre aqui aos mais velhos que ainda tenham memória lembrar os mais jovens como era o país há 50 anos atrás: ausência de serviço nacional de saúde, uma educação limitada imediatamente seguida para muitos pelo início do trabalho ainda na infância, uma juventude dizimada pela guerra colonial, um povo forçado pela miséria à emigração para Bidonville. Responder-se-á, e bem, que há que olhar para os desafios do futuro e não para o passado.
Também por isso, os desafios do futuro não serão vencidos com as soluções daqueles que apenas querem voltar a um passado que, felizmente, já não existe. Ora, mesmo as mazelas do presente mostram bem o alto nível a que, coletivamente, chegámos no último meio século: se por exemplo se questiona, justamente, o procedimento para administração de medicamentos milionários através do sistema nacional de saúde, não pode deixar de se reconhecer que é no sistema nacional de saúde, alimentado com os nossos impostos e gerido pelos nossos representantes, que todos confiamos nas situações mais delicadas que exigem meios técnicos, humanos e até financeiros de que nenhum particular dispõe. O mesmo se diga das escolas, universidades, meios de segurança, tribunais, infraestruturas básicas de funcionamento. Ou da inversão de país de emigrantes para destino de emigração.
Há seguramente muitas questões a melhorar e imensos problemas por resolver, alguns deles seguramente dramáticos do ponto de vista humano. Mas será bom mantermos todos a perspetiva do copo meio cheio, dando o devido crédito a toda a comunidade, nacional e europeia, que nos trouxe até aqui, incluindo os políticos das últimas décadas. Reconciliados com o muito que se alcançou, será seguramente mais simples aos eleitores balizar, através do voto, o muito caminho que há ainda a percorrer.