diario as beiras
opiniao

Opinião: Somos natureza, mas agimos como se não fossemos

20 de setembro às 11 h24
0 comentário(s)

Somos natureza, mas agimos como se não o fôssemos. Esta é a contradição maior do nosso tempo. Respiramos o ar que as árvores libertam, bebemos a água que corre das montanhas, alimentamo-nos de plantas e animais que partilham connosco a Terra. E, no entanto, criámos um modo de vida que nos faz esquecer, por vezes até negar e temer, esta pertença. Habituámo-nos a pensar que estamos fora dela, que a natureza é apenas o pano de fundo da encenação da vida e que está ao nosso dispor: um recurso a ser usado ou uma paisagem para contemplar à distância.
Durante séculos, a ciência ocidental reforçou essa ilusão. Francis Bacon falava em “reduzir a natureza à obediência”. Descartes propunha que o ser humano se tornasse “mestre e possuidor da natureza”. Estas ideias moldaram não só a filosofia, mas também as diversas ciências, as práticas económicas, as políticas utilitárias e as próprias sociedades, influenciando ainda hoje a nossa vida quotidiana. Quando acreditamos que estamos fora da teia da vida, é mais fácil justificar a destruição de florestas, a sobre-exploração dos solos e dos mares ou a urbanização que sufoca rios, degrada os ecossistemas e aprofunda desigualdades.
Esse afastamento traduz-se em gestos banais, repetidos todos os dias: no consumo sem limites, que não pára para pensar de onde vêm os bens e para onde vão os resíduos que daí resultam; na mobilidade dependente do automóvel, que polui o ar; na alimentação industrial, que trata animais como máquinas de produção e os reduz a meras mercadorias. Tudo isto com impactos severos nas possibilidades de vida, na morte, na saúde e no bem-estar. É a expressão de uma mesma lógica: a de que a natureza está ‘lá fora’ e nós ‘aqui dentro’, separados, senhores/as e utilizadores/as de algo que não nos inclui.
Ao negar a nossa pertença, perdemos as ligações e o abrigo da vida em comum. Perdemos também a humildade de reconhecer a nossa dependência e a nossa vulnerabilidade. As crises que enfrentamos hoje – o colapso climático, a perda de biodiversidade, as pandemias globais – não são problemas isolados. São fenómenos interligados que provocam caos, guerras e sofrimentos a que, de forma preocupante, nos estamos a habituar no dia a dia. São sinais de que a teia da vida está a desmoronar-se.
Somos natureza. Não estamos sozinhos. Partilhamos esta casa com inúmeras outras espécies, das quais dependemos e com as quais nos relacionamos, mesmo quando não as vemos. As abelhas que polinizam a diversidade possível dos alimentos que ingerimos, os fungos que regeneram os solos, o plâncton e os peixes que regulam os ecossistemas aquáticos, os microrganismos que habitam o nosso corpo e sustentam a nossa saúde – todos eles são parte da mesma comunidade. Ao destruí-los, destruímo-nos também. Ao protegê-los, protegemo-nos a nós próprios.
O verdadeiro desafio é abandonar a visão utilitária, responsável por reduzir a natureza a recurso, e assumir uma visão relacional de pertença e de corresponsabilidade. Uma visão do cuidado. Os humanos não estão fora da natureza, assim como as ciências não estão fora da humanidade. Mas não se trata apenas de ajustar técnicas ou metodologias ou saberes, ou de proclamar boas intenções. Trata-se de articula-los para reaprender a viver dentro da teia da vida, conscientes da nossa interdependência com outras espécies e com todos os sistemas que nos sustentam. Trata-se de agir. Só assim poderemos garantir futuro.

Autoria de:

Opinião

Deixe o seu Comentário

O seu email não vai ser publicado. Os requisitos obrigatórios estão identificados com (*).


Últimas

opiniao