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Opinião: SNS à deriva: a crise da carreira médica

22 de outubro às 11 h16
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Ao longo das últimas três décadas, a carreira médica em Portugal tem sido alvo de sucessivas alterações legislativas, muitas vezes contraditórias, que contribuíram para a sua degradação progressiva. Desde o início da década de 1990, mais precisamente 1992, o Governo de Cavaco Silva, iniciou a erosão de pilares fundamentais como a dedicação exclusiva, a estabilidade contratual e a progressão profissional. Esta trajetória não é apenas um reflexo de decisões políticas pontuais, mas sim a opção política de degradação da Carreira Médica no Serviço Nacional de Saúde (SNS), apostando na promiscuidade público-privado, prestação de serviços e na generalização do setor convencionado.
O diagnóstico é claro: “não atração e não fixação de médicos” no SNS, pela precariedade laboral no final da especialidade, concursos suspensos ou irregulares, incumprimento dos prazos dos concursos, ausência de médicos graduados em vários serviços, multiplicação das horas extraordinárias, trabalho/pagamento para recuperar listas de espera, uma verdadeira epidemia de prestação de serviços por empresas e proliferação de regimes de trabalho com promiscuidade entre os sectores público, privado, social e convencionado. A carreira médica é residual em setores como as forças armadas, medicina legal e INEM, e praticamente inexistente no setor privado.
À medida que a Carreira Médica foi sendo degradada, o SNS foi definhando, tornando-se inacessível a um número crescente de cidadãos.
A proposta de Orçamento de Estado para 2026 refere a necessidade de reforçar o número de médicos de família, mas não apresenta medidas concretas sobre recrutamento, retenção, incentivos ou formação. Num contexto de rotatividade e competição com o setor privado e com o estrangeiro, a ausência de uma política para revitalizar a Carreira Médica torna o plano estruturalmente frágil. Um sistema não se reforma sem reformar quem o sustenta.
A perceção pública acompanha esta realidade. Um inquérito recente (julho de 2025, Observatório da Sociedade Portuguesa – Behavioral Insights Unit da Católica Lisbon School of Business and Economics) revela que quase 90% dos portugueses consideram que a qualidade dos serviços de saúde está a piorar.
Contudo, há propostas concretas para a modernização da carreira médica. O “Novo Relatório sobre a Carreira Médica em Portugal” da Ordem dos Médicos de fevereiro de 2023 de Neves, M. J. (Coord.), propõe cinco graus e categorias, incluir o internato médico na carreira, concursos públicos regulares, reintrodução da dedicação exclusiva com majoração remuneratória, e extensão da carreira aos setores privado e social. Estas medidas são apoiadas por uma larga maioria dos médicos, como demonstra o estudo publicado a 02/06/2025, na Acta Médica Portuguesa (https://www.actamedicaportuguesa.com/revista/index.php/amp/article/view/22971/15678).
É urgente que o Ministério da Saúde abandone a postura de recusa em negociar, ignorando as legítimas reivindicações dos médicos e colocando em risco o futuro do SNS.
A revalorização global da carreira passa por medidas estruturais e não ações “avulsas” e isoladas: reintegração do internato médico como categoria de ingresso na carreira, regime de dedicação exclusiva opcional, diretores de serviço em dedicação exclusiva, definição clara de critérios para concursos, programa de fixação em zonas carenciadas e reconhecimento da penosidade, do risco e desgaste rápido da profissão, não permitindo que independentemente do local de trabalho, se ultrapassem as 48 horas semanais.
São também necessárias medidas salariais (aumentar a base e incentivos qualitativos de equipa), progressão vertical na carreira com a criação de mais graus, progressão horizontal com reformulação integral do atual SIADAP médico, simplificando-o e centrando a avaliação no serviço e não no médico individual.
Por fim, é essencial promover a democraticidade na gestão das unidades de saúde, introduzindo nos serviços hospitalares, à semelhança das USF, a eleição da Direção Clínica e dos diretores dos serviços/departamentos.
A carreira médica não pode continuar a ser tratada como um apêndice administrativo. Ela é o coração do SNS. Sem médicos motivados, valorizados e com condições dignas de trabalho, não há futuro para a saúde pública em Portugal.
Nunca desistir, como dizia Jorge Sampaio. Para já, há greve nacional dia 24 de outubro, na esperança de forçar o Governo a não desistir dos seus médicos.

Pode ler a opinião de João Rodrigues na edição impressa e digital de hoje (22/10/2025) do DIÁRIO AS BEIRAS

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