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Opinião: Quando a cidade falha

04 de agosto às 11 h19
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Marcos Lisboa foi meu aluno. Lembro-me do seu sorriso generoso e do seu trato educado e atento. A sua alegria genuína e a sua amabilidade eram conhecidas nos corredores da Faculdade de Economia.
O Marcos faleceu tragicamente na noite de 13 de julho, frente aos Arcos do Jardim, ao cair num vazio desde a Rua Martim de Freitas para o Bairro Sousa Pinto. A sua morte – prematura e injusta – foi descrita nos meios de comunicação locais e nacionais como “acidental”.
O muro de onde o Marcos caiu tem poucos centímetros de altura, uma proteção manifestamente insuficiente para evitar uma queda que pode ser fatal. E não é a primeira vez que isto acontece em Coimbra. Em dezembro de 2012, José Adelino Guerra, um homem invisual, que coordenava o serviço de leitura para pessoas com deficiência visual da Biblioteca Municipal, perdeu a vida ao cair num mesmo vazio desde a Rua Pedro Monteiro para o parque de estacionamento do Instituto Português do Desporto e da Juventude.
A morte de José Adelino deveria ter servido de alerta. Estas tragédias não podem ser vistas como “acidentes”. São, antes, o resultado da negligência nas infraestruturas de proteção, do desinteresse pela segurança dos mais vulneráveis e da naturalização da ideia de que “estas coisas acontecem”.
As políticas de mobilidade urbana não se esgotam na circulação rodoviária. A tão aguardada chegada do Metro Mondego é, sem dúvida, um avanço importante, mas está longe de garantir uma mobilidade segura e inclusiva em Coimbra.
Muros de proteção com altura suficiente para prevenir quedas. Passeios que permitam aos peões circular em segurança, sem terem de partilhar a faixa de rodagem com carros em alta velocidade. Passadeiras bem sinalizadas. Manutenção estrutural dos edifícios que evite o desprendimento de elementos da fachada. Tudo isto falta em Coimbra.
Num dos passeios da Rua Padre Manuel da Nóbrega, os peões caminham à beira de sucessivos vazios. Os da Rua Vitorino Planas enfrentam diariamente o risco de atropelamento devido à ausência de passeios. Quem tenta atravessar a Avenida de Conímbriga, perto da rotunda, vê-se obrigado a confiar que os condutores adivinhem a existência de uma passadeira mal sinalizada. Quem circula por certas zonas da cidade está exposto ao risco de queda de materiais provenientes de edifícios degradados (um dos casos mais recentes foi na Couraça da Estrela, perto do Largo da Portagem). São apenas quatro exemplos. Provavelmente, quem está a ler esta coluna conhece outros.
Marcos Lisboa e José Adelino Guerra foram vítimas de uma cidade que falhou em protegê-los. Foram vítimas e são hoje sujeitos de memória coletiva que nos interpela a desconstruir a narrativa impessoal do “acidente” e a reinscrever as suas mortes evitáveis no âmbito da responsabilidade política e social.
A responsabilidade é política, pelo muito que falta fazer. E é social, pela urgência do tanto que ainda nos falta exigir.

Autoria de:

Ana Raquel Matos

2 Comentários

  1. José Manuel Pereira Bastos diz:

    Quando faleceu o dr. Guerra, referido neste texto, chamei à atenção, também no DB, para a responsabilidade dos autarcas respetivos. De pouco vale; o que a autora denuncia, com vários exemplos, é referido por mim em conversas informais com responsáveis da CM e/ou da JF, mas sempre com grande ceticismo sobre o que possam vir a fazer.

  2. Carlos diz:

    Infelizmente são inúmeros os exemplos de falhas quando não se assumem os erros e não se corrigem os problemas.
    E o mais incompreensível e revoltante é perceber que os problemas não são corrigidos mesmo após conduzirem a mortes, permitindo a sua repetição, conforme aconteceu neste caso.
    Não basta a autarquia afirmar “que vai acompanhar a investigação e agir em conformidade com as conclusões… “.
    Na verdade, até pode esperar pelas conclusões, mas o que não pode, no imediato, é deixar de eliminar o risco de novas quedas, colocando, por exemplo, uma vedação provisória e/ou definitiva no local.
    De igual forma, não deveria a CMC afirmar, “recordando”, que “as condições locais existem há muitas décadas e fazem parte do património da cidade”, tentando trespassar para outros a responsabilidade pela eterna inação de quem tem responsabilidades. Se a situação já era conhecida, porque o devia ser, o atual executivo já podia e devia ter tomado medidas para acautelar o risco. E não o fez, nem antes nem depois do fatídico acidente do passado mês de julho,
    Não é suficiente dizer que “A segurança, especialmente em espaços públicos, “é uma prioridade absoluta” da Câmara”, há que o demonstrar, com ações concretas no terreno.
    E ocaso não pode ser tratado com um mero “acidente” ou uma “morte de causas naturais”. Tratou-se do resultado de uma aparente negligência num espaço público e, como tal, espera-se um processo de apuramento de responsabilidades, doa a quem doer, porque, para os pais do Marcos, a sua maior dor já chegou há 2 meses.

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