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Opinião: Primeiro levaram…

07 de maio às 13h23
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A grande limitação da História é não poder ensinar nada a quem não quiser aprender. Ou a quem não puder aprender, já que parece não haver nada mais fácil do que varrer a História para debaixo do tapete das evidências. Saiba-se, porém, que para contrariar a vontade milenar dos povos do direito à felicidade não basta ter o poder da televisão e dos demais canais de difusão de conteúdos. Porque mesmo quando um “ninguém” se converte em carne para canhão de interesses que não são os seus, movido pelas emoções de que os humanos são feitos, logo regressará à sua reivindicação principal: a da dignidade das vidas.
Deixou dito Salazar que ”se soubésseis quanto custa mandar gostaríeis de sempre obedecer”, palavras secundadas em ambiente menos solene – um autocarro da linha 4, por volta dos anos de 1980 – por um velho saudosista daqueles “tempos de ordem e serenidade”. “Não eram”, disse-lhe eu. E acrescentei que a minha leitura da História incluía a nenhuma serenidade de um primo ferido na Guiné, a emigração das minhas primas, o vizinho do rés-do-chão incorporado à força no exército colonial depois de ter sido preso político, o Paulito das barracas da Conchada que não ia à escola e não tomava banho, os espancados do Congresso de Aveiro, as jornadas oposicionistas no Ateneu de Coimbra. Pudesse o meu interlocutor, e ter-me-ia calado. Mas já não podia. Outros viriam, com a mesma saudade da “ordem”, mas sabedores de métodos mais eficazes de conformar pensamentos. Mobilizaram-se recursos planetários na criação de produtos universais de persuasão, umas vezes MacGyveres e Rambos enlatados, outras vezes documentários carregados de imagens de arquivo e prosa de cientista social.
Ainda que seja conhecida a eficácia da mensagem que se dirige aos canais da emoção, os que mandam neste mundo perceberam que contar histórias não basta para ocultar a História e, por isso, em pleno século XXI reinventa-se a censura na mesma página em que, ainda agora, a censura foi denunciada; abomina-se a violência no mesmo tempo em que os abominadores a praticam; evoca-se a liberdade no lugar mesmo da proibição. Nada que já não tenha havido – a História é lenta, mas vem desmentindo a inevitabilidade dos desequilíbrios, neste tempo em que a escravatura já não colhe a aceitação geral. Condoídos que se anunciam, os poderosos são imunes a qualquer dor. Cuidam dos seus interesses e fazem-no com a inabilidade própria dos egoístas universais: evocam a justiça, mas troçam dos tribunais; evocam a soberania mas amarram-na em taxas de juro; evocam a paz mas acumulam arsenais; evocam a verdade mas encarceram os assanges das denúncias da arbitrariedade (humilhados e extraditados, sem defesa nem notícia).
Também por cá se desenham estratégias de dominação, de que a guerra aqui ao lado é apenas um pretexto. O procedimento é o habitual: identifica-se um inimigo visceral (ainda que se faça alarde da sua fragilidade e declínio) e gasta-se vasto arsenal no festim martirizante. Mas o alvo não se fica por aqui. Cientes de que os inimigos não se medem aos palmos, os que usam as governações para o desconcerto dos destinos querem mais do que um troféu – querem tudo. Querem suprimir protestos, anseios, projetos, felicidades, evocações, a própria Liberdade, a Democracia ela mesma. Entretanto, chamados pelos ecrãs, alguns “ninguéns” alistam-se, empolgados, nas fileiras das redes sociais e no voto fácil em que se ocultam: ofendem os “ímpios”, partilham histórias disfarçadas de História, evocam heróis resgatados à infâmia, revolvem a memória dos mortos, aplaudem o derrube dos monumentos e a (re)crucificação dos mártires, mergulham em trincheiras feitas para serem sepulturas. Talvez um dia caiam em si, como no caso do pastor Martin Niemöller (nazi antes de ser prisioneiro dos nazis), que deixou este versos para a História (versão de um monumento em Boston, EUA) : “Primeiro levaram os comunistas, mas eu calei-me porque não era comunista; / Depois levaram os judeus, mas eu calei-me porque não era judeu; / Depois levaram os sindicalistas, mas eu calei-me porque não era sindicalista; / Depois levaram os Católicos, mas eu calei-me porque era Protestante; / Depois levaram-me a mim, mas já não havia quem pudesse falar”.

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