Opinião: Porquê eles e não eu?

A celebração da Páscoa representa para os cristãos o momento mais alto do ano. Em boa verdade, a comemoração acontece semanalmente, em cada domingo, mas as festas pascais anuais permitem uma meditação particularmente intensa sobre os acontecimentos que, há cerca de dois mil anos, conduziram da receção apoteótica de Jesus, o Nazareno, em Jerusalém à sua prisão e condenação a uma morte particularmente degradante reservada aos piores criminosos e aos escravos. Os relatos que os Seus discípulos nos transmitem são profundamente eloquentes relativamente à sua dificuldade em compreender o que estava a acontecer. Contudo, aquilo que experienciaram nos tempos que se seguiram à morte de Jesus e o testemunho que deram sobre a Sua ressurreição transformou-se numa força desmedida nos dois milénios subsequentes.
Um dos discípulos, pelo qual Jesus tinha especial predileção, relata de forma particularmente detalhada o que se passou nestes dias cruciais, dando um especial relevo ao que se passou na Última Ceia. É apenas devido a este relato pormenorizadíssimo que ficamos a saber que a Ceia foi precedida de um ato extraordinário: Jesus, assumindo uma tarefa típica dos escravos, “levantou-se da ceia, tirou as vestes e, tomando uma toalha, atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a secá-los com a toalha que tinha atado à cintura.” É também a João que devemos o registo da recomendação posterior: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros; como Eu vos amei, que também vós vos ameis uns aos outros. Nisto saberão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.”
Durante as cerimónias pascais, todos os anos é repetido este rito do lava-pés. Em muitas catedrais, o bispo lava os pés de doze presbíteros da diocese. Logo na Quinta-Feira Santa ocorrida a 28 de março de 2013, apenas uns dias após a sua eleição para o pontificado, o Papa Francisco optou por realizar esta significativa cerimónia numa casa de correção penal para menores, lavando os pés a doze dos menores lá detidos, de diferentes nacionalidades e confissões religiosas, incluindo duas raparigas. E explicava, pedagogicamente: «Lavar os pés significa: “eu estou ao teu serviço”.» Em todos os anos seguintes do pontificado (com exceção dos anos da pandemia), foi circulando esta cerimónia por prisões, casas refúgio de migrantes, centros de reabilitação de deficientes. Este ano, já impossibilitado pela doença, ainda assim fez questão de visitar uma prisão de Roma e de falar com setenta detidos a quem disse: “Todos os anos gosto de fazer o mesmo que Jesus fez em Quinta-Feira Santa, lavando os pés, na prisão. Este ano não o posso fazer, mas posso e quero estar próximo de vós. Rezo por vós e pelas vossas famílias.” Aos jornalistas presentes, disse: “De cada vez que aqui entro pergunto-me: porquê eles e não eu?” Só um grande pastor, uma grande testemunha de Cristo, é capaz de formular uma pergunta assim, que questiona eloquentemente as consciências e aponta diretamente para o mandamento registado por João.
Este pastor fiel conseguiu ainda forças para celebrar entre nós uma última Páscoa e para anunciar a esperança na sua última mensagem ao mundo: “O amor venceu o ódio. A luz venceu as trevas. A verdade venceu a mentira. O perdão venceu a vingança. O mal não desapareceu da nossa história e permanecerá até ao fim, mas já não lhe pertence o domínio, não tem qualquer poder sobre quem acolhe a graça deste dia.”
Obrigado, por tudo, Papa Francisco! Reze por nós!