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Opinião: Divulgação de ciência: simplicidade ou simplismo?

31 de março às 11 h43
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A divulgação de ciência assume um papel fundamental nas democracias contemporâneas. Desde há muito que o trinómio ciência-democracia-liberdade foi identificado como poderoso motor de desenvolvimento político, social e económico.

A ciência, enquanto filosofia da natureza, implica critérios bastante apertados de verdade dos modelos explicativos, sempre sujeitos ao veredito último dos testes experimentais. Esta perene limitação do pensamento pela realidade (que os anarquistas da “liberdade de pensamento” tanto gostam de contestar, desde os exegetas sociológicos aos adeptos de ordens executivas) permite uma certa “alforria” da Humanidade em relação ao mundo natural. O progresso no conhecimento da natureza permitiu à Humanidade esquadrinhar o Universo em todas as escalas.

Este extraordinário conhecimento permite um domínio tecnológico a partir do qual a humanidade cresceu até à atual população superior a 8 mil milhões de pessoas, dominando o planeta ao ponto de desregular o clima. Por último, a permanente ancoragem na realidade permite o desenvolvimento de padrões críticos de pensamento cuja utilidade transcende em muito a filosofia da Natureza e tem impacto direto na concretização da cidadania. Daí decorre a força do trinómio ciência-democracia-liberdade. Não é por acaso que todos os ditadores ou candidatos a ditadores gostam de começar por colocar as universidades na “ordem”.

Este tipo de conhecimento não é partilhado uniformemente por todos. A sua natureza ultra-especializada assenta em séculos de conhecimento acumulado e implica percursos muito longos de estudo e investigação, que convocam recursos humanos, materiais e financeiros importantes. Por sua vez, estes recursos exigem justificação adequada, em estados democráticos, o que implica que todos os cidadãos percebam a importância deste tipo de investimento. A um primeiro nível, através do ensino obrigatório todos têm um contacto incipiente e básico com algumas das ideias, dos métodos e dos resultados científicos, embora, sem surpresas, de lá saiam apenas um pouco menos ignorantes do que entraram.

A formação da opinião do cidadão não-especialista assenta posteriormente na divulgação científica, que assume por isso um papel destacado na atividade das universidades. O seu papel relevantíssimo na própria solidez da democracia não se reduz à organização de uns espetáculos cheios de luz e cor, de onde no final se sai menos informado e mais confundido do que se entrou. Esta vertente kitsch de “divulgação científica” tem, contudo, bastantes adeptos, assentando na abordagem populista bem sintetizada pelo “Jules César” de Uderzo e Goscinny, que ruminava com agradado espanto: “O povo está contente. Gosto que o povo esteja contente.”

Pelo contrário, o padrão a seguir na divulgação de ciência (incluindo os próprios programas dos ensinos básico e secundário) há-de obedecer ao cânone estabelecido pelo Pe. António Vieira: “O discurso há-de ser como as estrelas: as estrelas são muito altas, mas muito claras.” Ou por Sophia de Mello Breyner que, na sua já clássica recolha de poemas em língua portuguesa para a infância e a adolescência (“Primeiro Livro de poesia”) cristalinamente assevera: “É possível que muitos considerem este livro difícil. Mas a cultura é feita de exigência. Por isso afastei o infantilismo, o simplismo. Uma criança é uma criança mas não é um pateta.”

Autoria de:

Rui César Vilão

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