Crime: liberdade e poesia

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Artyom Kamardin e Yegor Shtovba são dois poetas russos. Em setembro do ano passado, foram detidos por terem participado numa leitura pública de poemas contra a guerra na Ucrânia, na Praça Triumfalnaya, em Moscovo, perto do monumento ao poeta Vladimir Mayakovsky, ponto de encontro de vozes divergentes, desde a era soviética. O evento foi realizado depois de Vladimir Putin ter anunciado uma campanha de mobilização para a guerra na Ucrânia. Os poetas, que primeiro foram acusados de “incitação ao ódio”, acabaram por ser legalmente indiciados por “apelar contra a segurança do Estado”. A acusação estendeu-se ainda a um terceiro poeta, que foi condenado a quatro anos de prisão no início do ano, depois de se declarar culpado e aceitar colaborar com a investigação. Kamardin e Shtovba declararam-se inocentes, mas esta semana foram ambos condenados a uma pena de prisão até sete anos. Crime? Liberdade e poesia.
Na sessão de leitura pública, Kamardin recitou um poema chamado “Mata-me, miliciano!”, uma obra crítica dos separatistas pró-Rússia no leste da Ucrânia. Logo no dia seguinte, o poeta foi preso depois de ter sido espancado e sexualmente agredido, numa violenta rusga a sua casa. A mulher de Kamardin conta que foi arrastada pelos polícias que lhe colocaram fita-cola no rosto, enquanto ameaçavam colar-lhe a boca e espancavam o seu marido no quarto ao lado. Kamardin teve de gravar um vídeo com um pedido de desculpa e, no final, mostraram-lhe uma foto dele: nu e coberto de sangue.
Durante as décadas de 1950 e 1960, a Praça Triumfalnaya foi um importante ponto de encontro para leitura de poesia. Ali, ouviam-se corajosas vozes discordantes e, posteriormente, na era pós-Stalin, manifestações de dissidências culturais e políticas. O monumento a Vladimir Mayakovsky era um ponto de encontro para leitura pública de poemas, tanto entre poetas como entre a assistência, uma tradição alimentada ao longo dos anos, principalmente por estudantes que se reuniam nesta praça para ler poesia, normalmente de autores esquecidos ou reprimidos, e para discutir Arte e Literatura. Esta Praça era uma espécie de incubadora, não apenas de novos poetas e intelectuais, mas também de novos contestatários, uma prática que nunca foi pacífica, mas era relativamente tolerada. Nos últimos meses, contudo, temos assistido ao silenciamento brutal das vozes discordantes do Governo de Putin, numa onda de repressão à oposição interna que, com a invasão em grande escala da Ucrânia, atingiu uma dimensão sem precedentes – não há espaços neutros.
Vem aí um novo ano que sucede a tempos marcados, como poucos na nossa História, pelo grito mudo do horror do mundo. Não há maior esperança do que a renovação e, porque vivemos de esperança, queremos acreditar em dias mais luminosos. Mas aqui, ao nosso lado, há poetas condenados por poesia e liberdade. A poesia pouco pode como arma de guerra, mas pode muito como arma de paz. Há um ano, a Casa Fernando Pessoa editou um pequeno livro chamado “Quando a primavera chegar – 10 poemas de guerra”. É um livro de poesia ucraniana, escrita já no contexto desta guerra, traduzida por poetas portugueses. Entre os poemas, há um – “Daqui não há como sair porque é demasiado curta a distância a um tiro depois da paz”, de Olga Bragina (traduzido por Raquel Nobre Guerra, a partir da tradução de Yuliia Kostiuk), cujo último verso fica a ecoar, em nós, depois das explosões:
“(…) para onde irás quando vier a paz e eu que vou aprender a desenhar para que tudo se torne real”.
Talvez seja esse o papel da poesia em tempo de Guerra: ser uma arma de reação, mais do que uma arma de ação. Depois do horror absoluto, do absurdo total, que confunde realidade com ficção, talvez a poesia nos ensine a redesenhar o mundo. Sempre que apagam um poema, sempre que prendem um poeta, estão a roubar-nos a folha em branco do futuro.

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