Bagagem de’escrita: Partida sem regresso Itália – 2002-∞

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Sentia-me como que a morrer na praia, sendo bafejado pela sorte de me cruzar com a pessoa certa à hora certa, mas com o valor errado. Mil euros, mesmo que a dividir por dois, era uma quantia estratosférica, fora do alcance de dois jovens de famílias da classe média portuguesa. Por vezes, o desespero faz-nos cair no ridículo, e este foi um desses momentos em que pergunto à senhora se nos poderia fazer um desconto, ao que a resposta foi prontamente negativa, em virtude da especulação de mercado tão fortemente ali sentidas.
Não haveria muito mais a fazer, já que as contas estavam feitas e ditavam um resultado nada animador. Todo o entusiasmo se estava a diluir em deceção quando se mete na conversa um casal acabado de chegar do Uruguai que comungava do mesmo problema que nós. Pouco depois já se vislumbram alguns acenos afirmativos. Surge assim uma luz no fundo do túnel, a tensão volta a tomar conta de nós, mas com ânimo à mistura. A solução não tardou a ser aceite, tendo em conta a miserável situação em que nos encontrávamos: aquela casa seria habitada não por duas, mas sim por quatro pessoas, pagando assim cada um 250€, mais as despesas, um mal menor para se despender no início do mês.
Chegados ao número 54 da “Via del Paradiso”, subimos umas escadas em que a pátina dos séculos já se fazia sentir para entrarmos num minúsculo apartamento no primeiro andar, onde demos de caras com uma cozinha que fazia também de sala de estar. Quando se abre a porta do quarto, o desalento instala-se quando percebemos o quão exíguo ele era. Mas a verdade é que por aqui tivemos de ficar até janeiro, altura em que finalmente arranjámos cada um o seu espaço numa residência universitária nos arredores de Siena.
Depois da tempestade, vem a bonança. Agora tinha olhos para contemplar a cidade medieval onde iria viver um ano letivo. A par das primeiras aulas, e do mundo social que se cultivou a partir do zero, Itália foi-se apresentando a mim aos poucos, sob a figura deste microcosmo toscano chamado Siena.
É inenarrável a sensação com que a imponência da Piazza del Campo nos prenda quando ali chegamos e nos sentamos naquela praça principal suavemente inclinada, cercada pela fineza de construções que remontam à época medieval e renascentista e tendo de frente, como se de uma obra de arte em cima de um palco se tratasse, o Palazzo Pubblico, a sede do poder local desde finais do século XIII, altura em que foi edificado.
Nos meses seguintes, este seria o epicentro dos encontros e desencontros que moldariam a experiência humana que aqui levaria a cabo, algumas vezes com a plenitude da degustação de um gelado artesanal de maçã verde. É nesta mesma praça que duas vezes por ano se dá a maior, a mais importante, sentida e sofrida corrida de cavalos de todo o país, ou mesmo do mundo, o Pálio, que dará três voltas em seu redor, mas isso será tema de uma futura crónica.
Siena, primeiro estranhou-se, e depois entranhou-se de tal maneira que, pouco tempo depois, e até aos dias de hoje, sempre fiz questão de dizer que “c’è un pezzettino di Toscana nel mio cuore” (“há um pedacinho da Toscânia no meu coração”).
Quando abandonei aquela cidade e aquele país onde tanto vivi, cresci e fui feliz, para regressar à minha Lousã não encarei isso como um adeus e um regresso à terra que me viu nascer. Foi, é e será mais um “até já” de um lugar que foi muito mais do que isso, e que por essa razão já aí voltei tantas vezes pelo cordão umbilical afetivo que aí foi criado.
Há viagens assim. Que extravasam o nosso conceito de tempo e de lugar, e que se transformam numa partida sem regresso.

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