Opinião: Revolver o lixo

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Bruno Paixão

Bruno Paixão

Perguntaram-me há dias qual a razão de haver em alguns canais de televisão programas de tão duvidoso gosto e de tão má qualidade. A resposta aparenta não ser difícil: porque estes programas são vantajosos no que toca à relação preço-audiência. Ou seja, a sua produção é barata e o consumo é auspicioso. Mas isto conduz-nos a uma segunda questão, quase sempre desconciliadora: o que é (e quem define) a qualidade da programação?
Muitas vezes associado à falta de qualidade, embora não seja exatamente a mesma coisa e juntá-los pode até criar uma nefasta confusão, o “telelixo” remete-nos para o tipo de programação que explora o escândalo, a intimidade, a faca-e-alguidar, a morbidez, entre outros aspetos igualmente torpes da condição humana, empregando a espetacularidade da ignorância, da infelicidade e do sofrimento na abordagem das pessoas expostas. Isto tudo para cativar audiências. É claro que muitos dos catalogadores da qualidade mediática, ofuscando-se a si próprios, granjeiam a ostentação de pertencer a uma suposta elite, uma minoria culta e inacessível, facto que lhes cria, como diz o crítico televisivo Eduardo Cintra Torres, um bloqueio intelectual que os leva a confundir qualidade com (o seu) gosto.
Assim, há que arrumar bem esta questão. Coisa que tenho tentado fazer, embora confesse que sem ter visto ainda a luz ao fundo do túnel. Mas nem por isso deixo de pensar, tal como Cintra Torres, que a qualidade deve ser definida com distanciamento de gostos e preferências pessoais. Logo, restam critérios técnicos, onde se inclui a boa construção da narrativa, a boa prestação dos profissionais que intervêm nas peças, uma realização bem conseguida, assim como uma eficaz adequação a meios inerentes, como o cenário, a luminosidade, ou o som. Desta forma, tanto podemos aferir programas como os Sopranos ou um talk show matinal, ou até um jogo de futebol. Já no que concerne à qualidade informativa, esta pode ser cotejada a partir do cumprimento deontológico, adicionando-lhe os outros preceitos já aqui referidos.
Regressando ao “telelixo”, lembro-me da concordância quase geral quando o ex-jornalista e Nobel da Literatura José Saramago referiu que “se a única coisa que oferecerem às pessoas for telelixo e omitirem que existem outras coisas, elas acreditarão que não existe mais nada para lá do lixo. Nestes momentos, a audiência é a rainha e por sua causa vale tudo”. Todavia, não deixa de ser espantosa a dissimulada característica da raça humana, notando-se que assiste a programas que publicamente censura. Há razões para tal acontecer. Desde logo pela perda de valores pessoais, que leva a preencher os vazios e as frustrações da vida com as emoções que estes programas superficiais provocam. Outra razão prende-se com o recôndito gosto pela desgraça alheia e pela insistência pérfida nos rumores e suspeitas justificados por um alegado jornalismo investigativo, dando a ideia de assim se certificar uma (ilusória e falsa) qualidade. Por fim, o uso e abuso de se reduzir tudo à explicação simplista e à descomplexificação intoxicante, tendo em conta o consumo fácil. Tudo isto ajuda a decifrar a expansão do “telelixo”.
Chegados aqui, é lícita a pergunta sobre como alterar este estado de situação, dando outras opções a quem realmente as quer, sem ferir a liberdade dos que optam por assistir a esse tipo de enfoque, e sem impor uma certa moralidade sobranceira àqueles que, no seu pleno direito, a rejeitam. Nada, até agora, surtiu efeito contra o “telelixo”: nem o boicote às televisões que o emitem ou aos seus patrocinadores, nem a tentativa de fomentar programas alternativos, em canais alternativos, dirigido aos vários públicos. No imediato nada surtiu efeito nessa conversão quimérica para produtos ética e culturalmente solventes. Por isso, continuo convicto de que o caminho da educação, neste caso a educação para os media, é o único que vale a pena trilhar.

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