“É em Sarajevo que vou celebrar o meu aniversário, com outros veteranos”

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Maria João Carvalho

Maria João Carvalho

A antiga freelancer de guerra, que trabalhava para órgãos de comunicação social portugueses e estrangeiros, incluindo a CNN, a RTP e a SIC, é analista da atualidade na “Torre de Babel” chamada Euronews.

Como é que surgiu a oportunidade de ir para a Euronews?

Um dia, quando me preparava para escrever um livro sobre uma guerra onde tinha feito reportagens, li um anúncio no “Expresso” com uma oferta de emprego na Euronews. Como pediam disponibilidade imediata, dirigi-me logo à RTP e, dois dias depois, estava a caminho de Lyon.

Que funções desempenha?

Sou analista, ou seja, aprofundo a atualidade, desde as notícias mais relevantes até à necrologia. A minha experiência no estrangeiro conferiu-me um poder de síntese muito grande, mas tendo sempre em conta que tenho de respeitar a lei e as culturas dos países a que as notícias se referem. Fazer análise em dois ou três minutos com estas condições, é a coisa mais difícil de fazer.

Não tem saudades da gastronomia portuguesa?

Não, porque cozinho muito bem [risos] e a minha casa está sempre cheia de amigos. Aqui em Lyon admito que tenho uma vida social muito preenchida.

O que é que estranha mais em França?

A falta do mar.

Ainda se lembra do seu primeiro trabalho jornalístico?

Sim. A primeira pessoa que entrevistei foi Armando Jorge, diretor da Companhia Nacional de Bailado, na altura, que concedeu a entrevista à estudante de direito simplesmente por ser da Figueira da Foz e ele se ter estreado como dançarino no casino da cidade. A minha vida de jornalista ficou absolutamente ligada à Figueira da Foz, apesar de ter nascido no Hospital Militar da Estrela, em Lisboa.

Onde iniciou a profissão?

A minha vida de jornalista começou num telhado com vista para o Rio Tejo, à conversa com David Mourão Ferreira, professor de Letras e Literaturas Modernas na mesma universidade em que eu estudava direito. Perante o meu desalento, por estudar algo que não queria e não haver, ainda, cursos de jornalismo, o poeta aconselhou-me: “Fazes como todos: dois anos num curso qualquer e um estágio de oito meses num jornal. Depois de ganhares tarimba, o teu coração vai guiar-te”.

E o seu coração guiou-a até à rádio…

Na Rádio Albufeira fazia um programa célebre, na época, “A moira da noite”, com música portuguesa e do mundo. A originalidade do programa estava também nas pessoas que escolhia para entrevistar ou “passar” música, como Fernando Pereira, Rui Veloso, o motard e fadista Rodrigo, Carlos do Carmo, entre outros, e toda a população algarvia, incluindo a cantora Bonnie Tyler, com quem jogava ténis quando ela não tinha par. A festa acabou com a atribuição de alvarás. A Rádio Albufeira era inconveniente, dava notícias e ensinava o ouvido do público a trautear Fausto em “Por este rio acima”…

O jornalismo veio a seguir?

Sim. Fiz o primeiro curso de formação geral em jornalismo, com todas as técnicas jornalísticas, e estagiei no Correio da Manhã. Como canto e procuro sempre a música, integrei-me no Hot Club de Lisboa e fiz várias reportagens sobre jazz. Consegui “ganchos” na revista do Instituto de Formação Profissional, dirigida por Bagão Félix, que me comprava artigos sobre inventores portugueses que ganhavam prémios e outras originalidades.
Trabalhei ainda como assistente pedagógica no Centro Protocolar de Formação Profissional de Jornalistas.
Posteriormente, fiz o curso de formação de formadores e um jornal na Ericeira, O Acontecimento, que só apresentava notícias e reportagens positivas, construtivas, mas o dinheiro não entrava…

Entretanto, fundou a APJJ.

Sim, com a Ana Rodrigues. A Associação Portuguesa de Jovens Jornalistas (APJJ) gerou sinergias, financiou projetos de formação, solidariedade, intercâmbios com universidades como a Sorbonne e jornais como o El Pais, com jovens jornalistas de 11 países da América Latina e Europa. E também organizámos o 1.º Congresso Nacional de Jovens Jornalistas no Casino da Figueira.

Fez a cobertura da Guerra dos Balcãs. Como foi?

Todas as 24 horas de todas as guerras que cobri são horas, minutos e segundos de histórias de sobrevivência, perdas, vómitos, medos vencidos. E depois da primeira guerra, a dos Balcãs, continuei a cobrir conflitos armados em muito mundo.

Qual foi o episódio que a marcou mais?

As crianças vivas queimadas nos esconderijos? Encenação de cadáveres para os inspetores da União Europeia? Destruição de Vukovar? Ter de pegar na câmara de um camarada checo que ficou sem braço e tinha um bebé para criar e não tinha seguro, que me pediu para o filmar? Ou ter os lobos da propaganda de guerra a tentarem vender imagens montadas, execuções sumárias? Fazer de morta no meio de cadáveres ou filmar bombardeamentos num “Mig” de instrução? Tenho tantos episódios marcantes quanto as saídas em bombardeamentos, progressos em terreno com mercenários ou militares, dormidas em trincheiras, em Angola, onde acordava com cobras verdes mortais, partidas em duas, sem perceber quem me salvava a vida. Lembro-me que num dos piores dias em Sarajevo comprei um bocadinho de água no fundo de um garrafão por 20 dólares, para lavar a camisa encharcada em sangue dos mutilados a quem fiz torniquetes em frente do Parlamento. Este ano, em junho, é em Sarajevo que celebro o meu aniversário, com outros veteranos.

Como é ser figueirense no mundo?

Ser figueirense no mundo, para pessoas como eu, é telefonar para os Bombeiros Voluntários da Figueira da Foz, onde fui voluntária, para saber como está o ex-colega que foi para o hospital, como correu o parto na ambulância ou quem ficou naquele acidente noticiado. Trabalho pela Figueira fora da minha redação, que transmite para todo o mundo em 15 línguas.

Tenciona regressar a Portugal?

Sim. Vou meter os papéis para a reforma, mas não vou ficar parada.

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