Memória de um Portugal desaparecido

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JOAO BOAVIDA

João Boavida

Aquilino Ribeiro é um autor para ler e sentir de uma maneira muito portuguesa, que não se casa, por isso, com a atual diluição duma identidade que foi tão nossa, nem com a desestruturação cultural a que se assiste, nem com muitas das regras que a moderna literatura começou a praticar, ou a despraticar, nem com a pobreza vocabular corrente, nem com a empáfia da literatura televisiva dominante, nem com a incultura transformada em cultura, nem com o palavrório ininterrupto feito com meia dúzia de, jargões e ideias feitas, como hoje é regra. E menos ainda com a moderna vertigem substitutiva dos estímulos, que tira o sabor à vida, e ainda menos com uma era de eletrónicas em que tudo desaparece no momento em que aparece, etc. etc. Neste sentido, Aquilino é hoje uma força conta a corrente, que tudo dilui, a voragem atual transformou-o num “Portugal velho” do melhor metal, numa rocha a que nos podemos agarrar; em suma, um autor com um valor educativo hoje altamente acrescentado.

É, por outro lado, a imagem dum Portugal que existiu, e de que pouco ou nada já resta: rural, pobre, política e economicamente injusto, mas ativo, habitado e animado, demograficamente vivo, humano e humilde, mas teso, finório e boçal, afável e velhaco, troca-tintas e honrado. Disso, desta mistura donde todos descendemos, Aquilino nos dá testemunhos através de tipos humanos inigualáveis, em inúmeras histórias e situações pitorescas, cruéis, hilariantes, traiçoeiras, amenas…

Mas o melhor de Aquilino está no gosto de descrever as paisagens beirãs, as aldeias, as festas, os trabalhos, as pessoas, os bichos; o amor na procura das raízes vocabulares e sintáticas, no trabalho da língua, de sentirmos o formão e a goiva da sua marcenaria fina afeiçoando uma madeira dura e macia, que deixa, depois de bem trabalhada, obra feita. Para durar. E perfeita. Aquilino Ribeiro é sobretudo um prosador, a gente sente-o a saborear o que escreve e a amar e a deleitar-se com o que descreve e conta. E ao lê-lo, assim como mergulhamos numa portugalidade antiga que nos moldou os ossos e os sentimentos, para o melhor e o pior, e de que andamos esquecidos, ou a tentar fugir, cheios de prosápia tola, também usufruirmos de uma espécie de reorganização interior, uma reformulação de alma que todo o sentimento estético nos provoca e engrandece.

A grande literatura é essa forma incessante de nos reorganizarmos, de acrescentarmos ao que éramos uma outra nova e mais rica forma de ser, de sentir por nós dentro esse oxigénio que a funda enxada, cavando, fortalece, revigora e amacia. Ler Aquilino é mergulhar nesse Portugal desaparecido, rural, duro, resistente, devoto e anticlerical, atrasado e finório, que era o mundo que foi o dos nossos pais, avós e tetravós.

Para os mais novos é um modo de ter notícia desse tempo perdido, de conhecer os sentimentos, as vozes, os olhares, os valores estéticos e morais de que era feito, e, ao mesmo tempo, ter a experiência de um país profundo, ancestral, resultante da acumulação de muitos sedimentos de gentes, hábitos, culturas, lugares, ocorrências, e que é, desta terra pobre e castigada, muito da sua melhor herança. Se todos os portugueses, hoje, pudessem ler, gostar e interpretar Aquilino Ribeiro, pelo que significaria de amor à Pátria, de conhecimento dela e de sentido crítico para os seus defeitos e qualidades, que grande mudança sofreríamos todos!

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