Opinião – Nas ruas da cidade

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Caminhava pelas ruas da baixa, menos distraído do que o habitual. Distraído é esse nosso modo de estar ali estando noutro sítio, a pensar em problemas, reuniões ou coisas parecidas. Mas dei comigo a observar quem passava. Onde iam a correr? Às compras não andavam, poucos sacos transportavam, apesar do Natal estar aí à porta, se o calendário não mente.

E foi então que me pareceu vê-la. Era ela, de certeza. Mesmo ao longe, reconheci-a. Há quanto tempo… Muito mais velha. Mas o mesmo rosto. O andar mais lento, demasiado pesado em corpo magro, seria hábito novo ou acaso de momento. Mas era ela. O rosto cansado e triste. Nada como a conhecia. Mas sim, era mesmo ela. Ana! – chamei. Ana! – gritei. Não se moveu. Não ouvira? De facto andamos todos na lua, a pensar nas vidas, meditava já eu. Já muito próximo, quase a tinha à distância de um braço, repeti. Então, Ana. Já não me lembra de te ver! Então sim. Ergueu os olhos. Pesados. Tristes! Olá! – respondeu-me em tom baixo, com voz arrastada. Gelei. Era como se me tivesse visto ontem e não a grande amiga que não via há algum tempo. Então, Ana, amiga, como vais? Demorou na resposta, como se em segundos lhe tivesse exigido um relatório completo sobre a vida e se fosse doloroso responder-me. Estás bem? – meti a medo, convicto de que não estaria. Vamos indo – sussurrou. Há quanto tempo, amiga! Nem telefonas! Vida agitada? Não, nem por isso! – retorquiu. Como assim? Tens sempre tantos projectos? Por acaso não te tenho visto, nem na televisão nem nos cartazes e anúncios de promoção das peças. Não me digas que a grande actriz tem tido pouco que fazer? E tinha. Ou melhor, nem tinha. Sabes, estou desempregada. E explicou. Como sabes, nós os actores temos momentos de paragem após certos trabalhos. Tu? Duvido! És uma das maiores actrizes deste país! Não te tenho visto, mas ando demasiado atarefado. Pois é, não me vês, simplesmente porque não tenho trabalhado. As artes, a cultura em tempo de crise sofrem brutalmente e nós artistas estamos a penar. Nunca estive assim – e quase cuspiu – porra! Tanto tempo sem trabalho! Uma coisita ou outra, de início, e agora nada! Desempregada! Eu? Que mal fiz eu para merecer isto? Aliás como muitas outras centenas de milhares de portugueses. Estou autenticamente na merda!

Bebemos um café. Tentei animá-la. Melhores dias virão… O futuro… Não desistir… Lutar… Lutar! Prometi telefonar-lhe mais vezes. E segui o meu caminho, deambulando pelas ruas da baixa, aos tropeções em pedintes, em mulheres e homens que circulam para não ficarem parados, de rostos tristes, talvez a deitarem contas à vida, talvez a darem a vida às contas, talvez a discutirem em silêncio a desvontade de emigrar.

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