Lucílio Carvalheiro
Somos um número de Bilhete de Identidade. Somos um número de Contribuinte Fiscal. Somos um número de Segurança Social. Somos um número de eleitor. Acresce o número no calendário mensal que nos condiciona o dia-a-dia.
Ora, todos estes números podem ser considerados de somenos importância (leia-se, mal menor) por ser possível os reenunciar em conexão com a vivência social, de modo menos formal – serão uma exigência civilizacional.
Dito isto, bem diferente é a utilização dos números das contas do Estado como arma política escravizante; e esta é a concepção, nos nossos dias, de só se cultivarem “factos políticos” que o mau uso da política utiliza como fertilizante para o crescimento de uma linguagem numérica, puramente técnica – apagam-se as pessoas, glorificam-se os números.
Repare-se que a ideia dos “esqueletos escondidos no armário” (números contabilísticos) ressurgiu com o não-caso no Instituto do Desporto; repare-se que o “desvio colossal” (número contabilístico) deriva da distância entre o ponto A e o ponto C, para se chegar ao ponto D; repare-se na utilização do slogan “simbólico” (viagens em classe turística, ar condicionado, taxação dos ricos) como desígnio político perverso de condicionamento mental, psicológico, do cidadão-comum; por menor que é o seu efeito prático dificilmente poderá ser discutido com seriedade.
Pois bem. Tem-se pensado e agido como se o acordo com a Troika houvesse criado uma situação tendente ao unanimismo político de aceitação da “ditadura dos números contabilísticos”; não pretendo, claro fique, minimizar o problema, extremamente grave, de tratamento puramente técnico, de um trabalho penoso como o é a tarefa de execução do acordado com o FMI, BCE, EU; um memorando que se me afigura não só sem sentido político – no sentido mais nobre que o próprio termo político encerra – como destrói a capacidade criadora do ser humano e porque não ousa enfrentar as tarefas árduas e práticas que têm de enfrentar os que compreendem que cada indivíduo é um fim em si mesmo.
Dito de forma mais prosaica, não menos substantiva, o memorando celebrado com a Troika é já uma doença muito perigosa devido à sua influência no campo do pensamento social, político, do indivíduo também.
Não obstante, para o fim em causa, para explicar as expressões “ditadura dos números contabilísticos”, assim como os motivos que me levam a decidir a favor da singularidade do indivíduo, permito-me enaltecer, como via a seguir, a experiência do trabalho humanizado como uma determinação social, como factor do aumento de produtividade, atitude que reconhece a diferença entre ser-se “senhor” e ser-se “escravo” que, neste sentido, faz com que a nossa vida mereça ser vivida.