Andringa e o Campo da Morte Lenta

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Estive recentemnete, numa sessão onde se falou de jornalismo, a propósito do documentárioTarrafal” de Diana Andringa. Muito interessante o documentário. Vale a pena ver com atenção.

Aprendi com uma mulher muito interessante que fala pelos cotovelos, talvez porque tem tantas coisas para contar. Uma jornalista séria, com opinião e que aponta questões muito importantes.

O documentário fala do Tarrafal, um campo de concentração criado pelo estado novo em 1936 (29 de Outubro) com o objectivo de receber presos políticos e todos aqueles que se recusam a submeter-se. O Tarrafal foi construído para humilhar, e nisso foi muito bem sucedido. Como dizia Esmeraldo Pais de Prata, o primeiro médico do Tarrafal, quando entrou no campo pela primeira vez “não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito”.

Do documentário e das palavras da Diana Andringa, retive várias coisas:

1. O jornalismo e o documentário (como forma de jornalismo com opinião) são uma forma de lutar contra o esquecimento. Pois são. E isso é muito importante e infelizmente cada vez mais raro. Mas apresentam uma perspectiva sobre o assunto em causa. A Diana Andringa percebe bem isso e coloca as coisas cruas nos nossos olhos, deixando-nos vê-las pelo seu lado humanista e de “colega sofredora”. De resto, deixa os juízos de opinião para nós próprios.

2. “O jornalismo faz-se com os pés”. Isto devia estar escrito na porta de todas as escolas de jornalismo. É preciso ir ao local, falar com as pessoas, ver, ouvir e sentir. Uma mensagem muito importante nestes dias de jornalismo de “agências de comunicação”.

3. Em todo o documentário, com dezenas de entrevistados, não se sente por uma única vez nada que se pareça com ódio. Não. Mas fica bem clara a marca da humilhação. Muito clara. Nisso o Tarrafal era um enorme sucesso, e a Diana Andringa soube passar bem esse sentimento.

4. Impressionou-me muito o senhor que levou para a entrevista as calças que usava na prisão. Todas rotas, fracas. Eram a marca da humilhação que ele não consegue esquecer, e que nos pede para não esquecer-mos. Memória. É outro dos objectivos muito bem conseguidos deste documentário. Documentar para memória futura e não esquecer o que fizemos como nação. Nem esquecer, sem julgamentos populares nem apreciações precipitadas, as pessoas envolvidas na organização daquele terror. É uma mensagem que Andringa pretende transmitir e que faz de forma muito subtil passando, por exemplo, um documento do Ministro do Ultramar (Adriano Moreira). 

Este documentário deveria ter mais perspectivas e mais depoimentos. Também para memória futura. De pessoas que estiveram do outro lado. Gostava de ter ouvido o director “fontes”, alguns dos guardas da prisão, pessoas do regime ligadas ao Tarrafal, médicos, o alferes que segurava a mão do Capitão Domingos.

Falta memória em Portugal. Mas acima de tudo falta o estímulo à reflexão sobre a nossa história. Será isso que impedirá que se volte a repetir aquilo que todos lamentamos.

A única coisa em que discordo de Andringa é na “vergonha do passado”. Eu não me envergonho de nada da nossa história. Lamento que tenham acontecido, e fico chocado com a perversidade e maldade de muitos momentos da nossa história colectiva, mas não me envergonho. Só me envergonho da nossa capacidade de esquecer, e com isso permitir que certas coisas voltem a acontecer. Essa sim é um forma de “Morte Lenta”.

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