Opinião – Tocar a reunir

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Rui Bebiano

Rui Bebiano

Esquerda e direita não são, como se disse já, categorias ultrapassadas. Também não correspondem apenas à separação entre quem defende o social, o coletivo e o papel nuclear do Estado, e quem destaca o individual, a hierarquia e a iniciativa privada.

Na verdade, alguns destes fatores são hoje partilhados por ambos os lados, enquanto outros, que há cem anos pareciam separá-los, certas vezes os aproximam. No primeiro caso está a valorização formal da democracia, que até partidos da direita mais extrema declaram agora respeitar. No segundo, a tentação do centralismo e do autoritarismo, outrora património da direita, que alguma esquerda incorporou e preserva como modelo.

Mas esta aparente confusão de práticas e valores confronta-se com um fator que distingue claramente os dois campos: a direita é muito mais capaz de se agrupar em nome dos seus valores mais essenciais, colocando entre parêntesis a gestão das divergências internas, enquanto cada setor da esquerda tende quase sempre a colocar, à cabeça das suas propostas, a convicção de que elas são as únicas «justas», devendo ser aceites pelos outros. Por outras palavras: a direita sabe unir-se de acordo com valores e princípios programáticos básicos, enquanto a esquerda tende a transformar cada divergência numa querela à volta dos princípios, impedindo um projeto unitário.

Em Portugal nada disto é novo, mas torna-se particularmente dramático para a esquerda numa situação crítica como aquela que atravessamos, quando o jogo democrático já não se pode limitar a referendar em eleições propostas estritamente partidárias. Perante a degradação do regime e das condições de vida impostos por uma direita que viu na crise económica um pretexto para aplicar o projeto de destruição do Estado social que jamais tivera a coragem de propor em quarenta anos de democracia, há que unir parte substancial da sociedade com base no essencial, de modo a encontrar uma alternativa consistente.

Tal não se consegue, porém, com vagas declarações de intenção, mas antes com propostas concretas. Mas o que vemos? O PS insiste mais na mudança de rostos que numa alteração profunda de políticas, rejeitando alianças à sua esquerda. O PCP não perde a tentação da hegemonia e, sem programa de governo, mantém-se um partido de protesto. O Bloco de Esquerda vive um tempo de indefinição, no qual a marca identitária se tem vindo a diluir. O Partido Livre e o Manifesto 3D são forças apenas emergentes, que propondo uma aproximação às diversas esquerdas, enfrentam a rejeição daqueles que desejam unir. Muitos cidadãos sem partido assistem a este espetáculo incrédulos e impotentes, caindo na apatia.

Reconciliar as diversas partes num projeto político arrojado é, porém, a única via que a esquerda possui para construir uma alternativa mobilizadora do eleitorado, sem o qual mudança alguma é possível. Formalmente até parece simples, «bastando» uma aproximação respeitadora das diferenças e centrada nuns quantos princípios: independência nacional num quadro europeu; negociação justa da dívida; regeneração do Estado social; desenvolvimento apoiado numa solução estável de governabilidade. E capacidade para convencer os cidadãos de que é possível regenerar um país descrente e deprimido. Difícil? Claro que o é, e muito. Mas a alternativa é deixar tudo na mesma. Ou seja, cada vez pior.

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