“O Centro de Artes Visuais é hoje um projeto esvaziado”

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04 ALBANO DA SILVA PEREIRA LC  (18)

Uma década depois de ter sido inaugurado, o Centro de Artes Visuais (CAV) – com o passado ilustre dos Encontros de Fotografia de Coimbra e a integrar o projeto ambicioso de transformar o espaço do Pátio da Inquisição em centro cultural –, parece ter sido abandonado pela cidade. Razões para isso?

As eleições que aconteceram na altura e que trouxeram uma mudança do ciclo político. Parece que é uma constante de alguns autarcas deste país não respeitarem a obra dos anteriores, esquecem-na. E foi o que aconteceu aqui. Basta olhar para as vitrinas, para os espaços, para o acesso ao Teatro da Cerca de São Bernardo – só há muito pouco tempo, já na presidência do dr. João Paulo Barbosa de Melo, é que teve início a obra (para a Cena Lusófona) de requalificação –, mas, inequivocamente, ouve uma interrupção brutal no plano que o dr. Manuel Machado tinha traçado com os arquitetos, nomeadamente com João Mendes Ribeiro.

 

E as entidades que desenvolviam atividade cultural?

Sem dúvida. Mas também com entidades comerciais, porque o que esteva planeado era um espaço de fruição cultural de grande amplitude e com forte cunho de abertura deste espaço. O que, na altura, me pareceu extremamente interessante e que, hoje, volta a ter uma pertinência especial com a inscrição na lista de Património da Humanidade desta parte da cidade.

 

A intervenção no Pátio da Inquisição foi, de alguma forma, o início do grande projeto para a rua da Sofia?

Exatamente. A recuperação do Pátio da Inquisição, com a instalação do Centro de Artes Visuais, foi o primeiro passo para essa grande intervenção que continua por concretizar.

 

Um projeto interrompido, que fazia todo o sentido na altura e que, hoje, as novas circunstâncias da cidade exigem?

Fazia sentido. Fazia todo o sentido. E o arquiteto João Mendes Ribeiro traçou um projeto que dava a abertura necessária para a rua da Sofia. Para além da instalação das duas instituições – Centro de Artes Visuais e A Escol da Noite –, a desenvolverem um trabalho programático e patrimonial consistente, mas há anos instaladas de forma precária, este projeto tinha ainda algumas grandes virtudes: este foi o primeiro ato simbólico de requalificação urbana da Baixa de Coimbra e, particularmente, do seu centro histórico. Com um arquiteto de Coimbra e de qualidade reconhecida. Depois, tinha implícita essa ideia de criar um centro cultural, com o Centro de Artes Visuais (CAV) e A Escola da Noite, mas também com outras instituições, criando um foco de economia e animação através deste espaço que, durante anos, foi vedado à cidade como um gueto de estacionamento, de instalações de serviços camarários. E havia uma terceira vertente que apontava para que, gradualmente, se fizesse a saída dos serviços camarários para que fosse instalada essa estrutura multidisciplinar, esses equipamentos, fossem eles comerciais, de animação cultural e urbana. Este era um projeto de uma extrema importância para a Baixa de Coimbra e para a cidade. Naturalmente que eu, enquanto cidadãos e gestor do CAV/Encontros de Fotografia abracei com todo o entusiasmo este projeto, até porque já aqui fazia exposições, de modo até a exorcizar aquilo que foi a Inquisição e o desperdício deste espaço magnífico durante séculos. Infelizmente, o que aconteceu é que, depois da instalação do CAV e, mais tarde, do Teatro da Cerca de São Bernardo, todo o projeto que estava programado foi abandonado.

 

Abandono que pouco depois, como tem sido denunciado, se estendeu às duas instituições culturais aqui sedeadas?

Como é do conhecimento público e aconteceu a nível logístico e financeiro. Isto independentemente do epíteto de subsídio dependentes, depois de, no primeiro mandato do dr. Encarnação, nomeadamente para Coimbra Capital da Cultura, termos sido os maiores. Particularmente, o CAV foi, nessa altura, o hall da cidade para ministros, para convidados, para a promoção da cidade. Nessa altura, a dotação financeira da câmara ao CAV era a adequada, determinada em função de um orçamento digno de funcionamento e programação. Mas dois anos depois foi completamente abandonada e assim continua.

 

Foi então que aconteceu o fim dos Encontros de Fotografia de Coimbra?

Essa foi, tenho a certeza, uma atitude absolutamente propositada. Em 2002, o então ministro da Cultura, Augusto Santos Silva, deixou um contrato assinado com os Encontros de Fotografia Associação Cultural, no valor de 500 mil euros, para produzir a bienal Encontros de Fotografia que iria inaugurar oficialmente Coimbra Capital Nacional da Cultura. Esse contrato existe, nós temo-lo aqui. E nele havia uma comparticipação nacional de 25 por cento, com 75 por cento a candidatar a verbas europeias pela comissão da Coimbra Capital da Cultura. Estranhamente, não houve candidatura, seguindo-se depois todo um processo verdadeiramente maldoso no sentido de me atribuírem responsabilidades, dizendo que o financiamento protocolado para o funcionamento regular do CAV e da sua programação já estava incluído na verba destinada à bienal. Só uma carta, voluntária e corajosa, do dr. Augusto Santos Silva, veio dizer que não era verdade, uma vez que o contrato assinado não dizia isso. E foi assim que acabaram com os Encontros de Fotografia, um festival que era da cidade. Assinou-se então um novo protocolo, com 300 mil euros do Ministério da Cultura e 200 mil euros da autarquia, que, um ano depois, a 30 de dezembro de 2005, em carta, me comunicava que a proposta de orçamento não era de 200 mil euros mas era de 60 mil euros. E nem os 60 mil euros pagaram. Durante três anos a Câmara de Coimbra não pagou nada ao Centro de Artes Visuais.

 

Está a dizer que este foi um processo deliberado?

Foi deliberado, não há dúvida nenhuma. E que veio consumar-se na posição inequívoca e pública quando começou a chamar-se subsídio dependentes aos que representam as instituições, que fizeram um trabalho milagroso, sem qualquer tipo de segurança no futuro, aos que, de facto, construíram a cultura desta cidade ao mais alto nível.

 

Todo esse processo contribuiu para conduzir ao estado de degradação em que se encontra o edifício do Centro de Artes Visuais?

Naturalmente. E este é um equipamento público, construído com investimento público. O que é criminoso é, por exemplo, o investimento vultuosíssimo num ar condicionado que nunca funcionou como devia funcionar. Mas há mais exemplos de incúria e irresponsabilidade: durante 10 anos, num edifício público com dois andares, nunca se instalou o elevador destinado aos deficientes, nem sequer a legalidade foi cumprida. Mas basta ver o estado de degradação geral do edifício, com uma ala onde o teto abriu um enorme buraco há mais de um ano e nada foi feito. Portanto, o que esteve aqui em causa foi muito mais do que a atitude do corte e da ausência do apoio financeiro. Em causa esteve, de facto, uma proposta inequívoca de liquidar os Encontros de Fotografia de Coimbra, o CAV e a mim próprio. Mas resistimos, sobrevivemos. Em primeiro lugar, porque a administração central, de facto, não deixou cair a instituição. E, depois, porque, diga-se com verdade, houve algum cuidado e estima no meu relacionamento pessoal com o dr. João Paulo Barbosa de Melo, com algum alento e expetativas.

 

Expetativas que não chagaram a concretizar-se, uma vez que os problemas antigos permanecem e agravam-se?

Não foi nada resolvido. O ar condicionado continua a não funcionar…

 

Num equipamento que tem em depósito obras de arte?

Mais de duas mil obras, numa coleção que, na fotografia, é a mais valiosa em Portugal. E é tratada desta forma, o que é um crime, porque nem sequer se fez uma auditoria, num tempo em que deveria e poderia ter-se reivindicado junto da empresa. Fizeram-se dezenas de reuniões, mas não se fez nenhuma auditoria e não se responsabilizou ninguém. Não se fez aquilo que se deveria ter feito, penalizando a instituição e as pessoas que aqui trabalham. Mas, fundamentalmente, a falta de climatização adequada danifica as obras irremediavelmente, porque são em papel, não são em ferro.

 

E há obras danificadas?

Claro que sim. Muitas, dezenas delas. Porque o desequilíbrio na humidade e nas temperaturas dá cabo das emulsões fotográficas. E isto é lamentável. Continuamos ainda sem uma reserva. E, simbolicamente, temos uma escultura que é da cidade, que o autor [Pedro Cabrita Reis] ofereceu à cidade, soldada. Aquela que era uma escultura móbil passou a ser rígida, porque foi soldada. Mas basta olhar para o Pátio [da Inquisição], a sujidade, a falta de cuidado, o estado do acesso à Cerca de São Bernardo. É inequívoco que, independentemente da motivação e do cuidado do dr. João Paulo Barbosa de Melo, e tenho de ser justo, não há dúvida que houve aqui incúria e um propósito de liquidação desta instituição que veio na continuidade da liquidação dos Encontros de Fotografia de Coimbra.

 

Que propósito é esse?

Não faço ideia. Mas um autarca, na minha perspectiva, seja quem for, não é obrigado a gostar de arte contemporânea, não é obrigado a gostar de fotografia, não é obrigado a gostar de música, não é obrigado a gostar de ópera. Tem é de ser uma pessoa suficientemente educada para se informar da importância que estas atividades, projetos e instituições têm para a cidade. Quem nem sequer tem sabido aproveitar o potencial que tem para a necessária ligação com as escolas e o ensino, aos vários níveis, do pré-escolar ao superior e que nós já propusemos diversas vezes à autarquia. Porque o grande potencial da arte e da cultura está nos mais novos. É neles que temos que apostar.

 

Este projeto, o da formação, é, aliás, um dos que nunca avançou no CAV?

Nunca avançou por falta de condições fundamentais: espaço e verbas. A arquitetura deste espaço é restritiva, a parte funcional do edifício é muito limitada. No início do projeto CAV ficou claro que iria haver a cedência de todo o rés-do-chão, com a continuidade para o Pátio da Inquisição, para espaço de armazenamento das obras de arte e para que pudéssemos organizar toda a logística. Mas isso nunca aconteceu e nós acabamos por ficar incapacitados para desenvolver o projeto. Esta foi durante os mais de 20 anos dos Encontros de Fotografia de Coimbra e continua a ser a instituição cultural que mais promoveu e continua a promover a cidade em Portugal e em termos internacionais. Em termos patrimoniais, Coimbra tem a Universidade e o Museu Nacional de Machado de Castro, mas em termos contemporâneos temos os Encontros de Fotografia de Coimbra, que repuseram a cidade no mapa da contemporaneidade nacional e internacional.

 

Apesar de todas estas contrariedades, o CAV sobrevive?

É xatamente isso, sobrevive. Mantém a atividade aos níveis mínimos, encerrando alguns meses no verão. Sim, porque nós fazemos um trabalho sério. Nós não fazemos com cinco aquilo que deveríamos fazer com 20. Todos nós devemos fazer esforços redobrados em função da crise em que vivemos, mas não podemos abdicar do nível básico da dignidade das pessoas e das instituições. Logo em 2005/2006 fomos obrigados a reduzir ao mínimo a equipa, com todos, sem exceção, a serem pagos a recibo verde. Depois reduzimos segurança, iluminação e horário. Isto em vez de alargar o horário, que foi sempre uma das pretensões fundamentais na programação, dinamizando projetos de sensibilização relativamente à arte contemporânea e com um desenvolvimento intensivo no plano dos projetos educativos.

 

O projeto encontra-se esvaziado?

Completamente esvaziado. Neste momento, as portas estão abertas, há fotografias penduradas, mas é só o que fazemos. Isto porque nós estamos a gerir este equipamento e a sua programação com uma verba recebida em setembro de um protocolo que acaba em dezembro, com um financiamento que não chega sequer para o funcionamento do equipamento. Nós estamos apenas a sobreviver. O que é, de facto, triste e injusto e é uma perda em relação à economia da cidade, porque o investimento feito na cultura é reprodutivo.

 

Acredita que, neste momento da cidade, com a viragem política ao nível municipal, está aberta uma nova oportunidade para os projetos culturais como o CAV?

Não tenho dúvidas nenhumas. Se, de facto, o programa do dr. Manuel Machado, em termos de desenvolvimento da cidade, integrando a cultura como um pólo absolutamente essencial ao desenvolvimento, promoção e animação da cidade, for assumido, não tenho dúvidas que assim será. Além disso, é absolutamente suicida fazer outro caminho. Não sei o que se pensa fazer deste projeto de Coimbra Capital da Humanidade, não sei como vão recuperar-se os equipamentos e, depois de recuperados, quais os programas, as pessoas e os financiamentos com que irão funcionar. Mas, independentemente da ciência e da saúde, matriz fundamental da cidade, temos a cultura e o turismo. Se não existe indústria no concelho, se o comércio está como está, como é que vamos desenvolver a cidade? A resposta só pode encontrar-se na produção e promoção cultural e turística.

 

Essa será a via única para Coimbra?

Eu gostaria que, com mais de uma década de diferença, o dr. Manuel Machado corrigisse os erros do passado, na gestão dos equipamentos e no relacionamento com todas as instituições culturais da cidade, para que haja um financiamento adequado, com protocolos a estabelecerem claramente as obrigações e os direitos de cada parte. Sem esta outra matriz que é de Coimbra, perde-se uma oportunidade fundamental e, quem sabe, única.

 

O novo presidente da câmara municipal apresentou como propósito, ainda em campanha, a reedição dos Encontros de Fotografia de Coimbra?

Eu tive uma grande felicidade quando soube da integração no programa eleitoral do dr. Manuel Machado dos Encontros de Fotografia de Coimbra, que sempre foram um projeto da cidade, sobretudo pelo seu simbolismo. Este é um novo discurso. Mas, seja este ou outro autarca, não há mais nenhuma forma de potenciar as cidades para os seus cidadãos e para o mundo, que não seja promoverem aquilo que de qualidade têm.

 

Convento de S. Francisco

Coimbra tem em fase de conclusão, mas já a levantar inúmeras questões, algumas estranhamente familiares, o projeto do Convento de S. Francisco?

Depois de uma visita que fiz ao Convento de S. Francisco, para a qual o dr. Barbosa de Melo teve a gentileza de me convidar, fiquei muito preocupado. Primeiro que tudo, não sei como é que se pode conceber, construir de raiz e fazer um investimento de tal modo vultuoso sem haver uma definição prévia do programa e dos objetivos desse equipamento. A primeira grande questão é essa: a de indefinição. Fala-se em congressos, fala-se em arte contemporânea. Mas ainda não se sabe o que será. Segundo, independentemente da obra e da extraordinária qualidade da recuperação pensada pelo arquiteto João Carrilho da Graça, constrói-se um auditório para 1.100 lugares. Um auditório sobredimensionado, sobretudo na sua funcionalidade. Depois, há outra questão fundamental: os custos para fazer funcionar um auditório daqueles. Mas estabeleço, naturalmente, uma relação direta com o orçamento do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra e com o atrofiamento de muitas instituições com os atrasos no seu financiamento.

 

Este é um grande desafio para o novo executivo municipal em Coimbra?

É um grande desafio. Eu não posso inibir-me, de uma forma frontal e séria, sem jogos de bastidores, sem interesses políticos ou relações com construtores civis, de dizer, depois da minha visita, conhecendo os custos já envolvidos e com base na minha experiência de gerir, em limites mínimos, 1.700 metros quadrados, que este é um problema muito complicado.

 

É possível que o projeto de S. Francisco aconteça sem a participação ativa de outras entidades de criação e dinamização cultural da cidade?

Eu, em tempos, fiz essa sugestão ao dr. João Paulo Barbosa de Melo. Atendendo aos constrangimentos orçamentais resultantes da situação do país e da cidade e mesmo sem eles, eu pessoalmente entendo que é salutar e sinérgico o trabalho em equipa, seja na música, no teatro ou nas artes visuais. Porque, felizmente, temos instituições com uma qualidade média considerável. E outras já com uma dimensão nacional e internacional significativa e que, portanto, têm potencialidades para poderem colaborar, coproduzir e trabalhar em conjunto. O que seria salutar, não só no plano económico, mas também no plano político e institucional. Mas não me parece que, para já, estejam criadas as condições para isso. Mesmo porque não existe qualquer definição relativamente ao projeto global.

 

Partiu-se para este grande projeto sem se saber o que ele deveria ser?

Aparentemente. E a grande verdade é que os espaços e os projetos de arquitetura podem ser extraordinários, mas depois sem financiamento para a sua programação e para a sua sustentação não valem nada, são monstros, passam a ser uma tragédia. O equipamento que está ali desenvolvido é utópico. Ou, se quisermos, de uma forma mais rigorosa, desequilibrado em relação ao potencial da cidade. Eu gostaria muito que, todas as semanas, duas mil pessoas pudessem ir ver concertos, peças de teatro, cinema, exposições.

 

Mas a realidade não é essa?

Não, a realidade não é essa. Infelizmente, a cidade está adormecida, não só por motivos económicos, mas também por motivos de descrença social. Todos nós estamos concentrados em sobreviver, em pagar as nossas contas. E tornar rentável – rentável no plano numerário, porque a cultura é sempre rentável no plano social –, conseguir equilibrar alguns custos, sobretudo num equipamento daqueles, não me parece tarefa fácil.

 

 

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