Opinião: Jornalismo. Da Reportagem à Performance
A recente crispação entre diferentes agentes políticos e o jornalismo deve fazer-nos refletir sobre o protagonismo deste na sociedade. Durante décadas, o jornalismo foi sinónimo de rigor, discrição e compromisso com a verdade factual. Os jornalistas eram reconhecidos pela sua sobriedade e pela recusa em se tornarem protagonistas da notícia. A confiança que os cidadãos depositavam na imprensa nascia dessa promessa silenciosa de equidistância, dessa ética invisível que impunha limites ao ego e dava prioridade ao dever de informar. Hoje, essa promessa está em erosão, e a fronteira entre jornalismo e opinião desfez-se, com consequências preocupantes para a saúde democrática.
Assistimos, nos últimos anos, a uma metamorfose inquietante: o jornalista deixou de ser um observador para se tornar, cada vez mais, um intérprete da sua realidade. Muitos passaram a ocupar o centro do palco mediático, não apenas para relatar os factos, mas para os comentar, interpretar e, em muitos casos, manipular a informação. A isenção, outrora bandeira da profissão, cede agora lugar a uma nova lógica de exposição pessoal, onde o jornalista assume sem pudor a defesa de quadrantes ideológicos, muitas vezes de forma explícita.
Não se trata de uma crítica à liberdade de expressão, valor basilar de qualquer sociedade plural, mas sim de uma chamada de atenção para a confusão crescente entre papeis profissionais. O comentador tem, por natureza, uma função opinativa. Já o jornalista tem o dever de se abster. Quando os dois papéis se fundem numa só figura, o resultado é a descredibilização da informação e a erosão da confiança pública na imprensa.
Mais grave ainda é o facto de esta transformação ocorrer num tempo em que a verdade se encontra sob ameaça constante. As redes sociais amplificam a desinformação, os algoritmos favorecem os extremos e o ruído mediático obscurece os factos. Num cenário como este, mais do que nunca, esperava-se dos jornalistas um compromisso renovado com a sobriedade, o contexto, a verificação e o contraditório. Em vez disso, muitos optaram pela rotatividade nos painéis televisivos, pelas colunas de opinião personalizadas, pelo comentário fácil travestido de jornalismo.
Este fenómeno contribui, de forma direta, para o agravamento da polarização, tão evidente em Portugal. O espaço público, já frágil, torna-se um campo de batalha onde se gritam certezas em vez de se cultivarem dúvidas. Os jornais e canais tornam-se trincheiras ideológicas. O contraditório é abandonado. O pluralismo cede à narrativa. E o jornalismo, nessa lógica, transforma-se num produto opinativo indistinto, incapaz de se distinguir de uma publicação militante ou de um simples “post” nas redes sociais.


