O SNS e a difícil arte de mudar para que tudo fique na mesma
Em Portugal, já percebemos que pouco importa quem ocupa a cadeira de ministro da Saúde: o resultado tende a ser sempre o mesmo. Sempre que alguém tenta mexer seriamente nos interesses instalados, a máquina reage com uma precisão quase coreografada. Surgem notícias de falhas graves, acumulam-se partos em ambulâncias, multiplicam-se relatos de mortes evitáveis. A opinião pública é pressionada, o pânico instala-se e a mensagem repete-se: qualquer mudança ameaça o SNS.
Entretanto, o orçamento, já próximo dos 20 mil milhões de euros, permanece um bolo demasiado apetecível para ser repartido de outra forma. Não admira que até uma voz independente como a do cirurgião Eduardo Barroso tenha afirmado, com uma franqueza rara: “A atual ministra está a afrontar demasiados grupos na saúde.” A frase resume o essencial: quem tenta reformar o sistema perde sempre para o sistema.
O drama é que não nos faltam recursos, falta-nos gestão. Portugal tem mais médicos por habitante do que a média da OCDE e apenas uma ligeira diferença no número de enfermeiros. O número de camas também não destoa. Ainda assim, vivemos num SNS onde “não há médicos”, acumulam-se faltas, somam-se horas extraordinárias e multiplicam-se horas à tarefa, como se tudo fosse provisório quando, na verdade, tudo é estrutural. Em 2024, médicos e enfermeiros fizeram milhões de horas extra, e o país gastou centenas de milhões em tarefeiros para tapar buracos que não são exceção, são a regra. Nada ilustra melhor a ineficiência crónica do sistema do que este modelo: recorrer a médicos pontuais para suprir necessidades permanentes, pagando mais para obter menos.
A raiz do problema está nas escolhas estratégicas dos últimos dez anos. Serviços públicos degradados, agravados pela pandemia, empurraram os portugueses para o setor privado, onde seguradoras e grupos hospitalares reforçaram posição com a eficiência típica dos operadores de mercado. Captaram médicos, ganharam quota e deixaram o SNS ainda mais fragilizado. Em paralelo, continuámos presos a uma contratação pública lenta e desajustada, que impede uma gestão verdadeiramente racional dos recursos. As experiências de gestão mista, as famosas PPP, mostraram bons resultados, mas, misteriosamente, foram encerradas. Até hoje ninguém explicou de forma convincente porquê. O país perdeu eficiência, previsibilidade e capacidade de resposta… e tudo por escolha política.
Como se não bastasse, as revelações recentes sobre pagamentos milionários a médicos no âmbito dos programas de recuperação de cirurgias atrasadas mostram a profundidade da disfunção. Estamos a pagar incentivos extraordinários para que o sistema faça o que já deveria conseguir fazer em circunstâncias normais. É como pagar horas extra permanentes numa empresa que nunca contratou o pessoal suficiente: uma lógica perversa que recompensa o remendo em vez da solução.
O mais preocupante é que tudo aquilo que realmente importa, a estratégia para o SNS, o tipo de serviço que o país quer prestar, o papel dos privados e de outros operadores, a própria arquitetura funcional do sistema, continua em aberto, sem consenso e sem coragem política para decidir. Enquanto este vazio estratégico se mantém, a gestão corrente repete padrões de desperdício que vários especialistas estimam poder superar os 20% do orçamento anual. É dinheiro que desaparece sem melhorar cuidados, sem reduzir listas de espera, sem reforçar equipas.
Mais cedo ou mais tarde, a atual ministra acabará por cair, como caíram todas as anteriores. E quando esse dia chegar, nós, os portugueses e o próprio SNS, nada teremos ganho. Quem voltará a ganhar serão exatamente os mesmos grupos que sempre lucraram com a instabilidade, a ineficiência e a incapacidade crónica de reformar o sistema.
Enquanto os interesses individuais pesarem mais do que o interesse público, continuaremos a viver num país onde tudo muda para que tudo fique exatamente na mesma.

