A ministra debaixo de fogo e o silêncio das reformas
A senhora ministra da Saúde, Ana Paula Martins, encontra-se, para dizer o mínimo, “debaixo de fogo”. Todos os dias, a comunicação social lança-lhe contra-ataques. Não é surpresa que o tabuleiro mediático esteja ensanguentado, e não por atos de guerra heroica, mas pela lenta derrocada do Serviço Nacional de Saúde (SNS), aquela promessa de sociedade igualitária que, entre discursos pomposos sucumbe sob o peso da ausência de reformas sérias.
Por um lado, a imprensa, com justa razão, pressiona: “vem aí outro fecho de maternidade”, “gravidez sem acompanhamento”, “morte de grávida”. A ministra, por seu turno, aparece em audições parlamentares, enuncia que “não me demito”. E assim seguimos num teatro de responsabilidade política onde o principal papel é o do evitar que o telhado desabe, mas a casa já ruiu.
No entanto, convém notar que esta pressão mediática, embora legítima em muitos pontos, tem ganho contornos de verdadeira caça política.
A comunicação social, alimentada por influências ideológicas que historicamente orbitam à esquerda, parece hoje mais interessada em sangue do que em soluções. Todos os dias se exige uma demissão, uma confissão, uma cabeça política em bandeja. E é curioso observar como a mesma esquerda que destruiu progressivamente o SNS, por excesso de controlo estatal, por resistência à mudança e por dogmatismo ideológico, surge agora, moralmente impoluta, a apontar o dedo a quem tenta sobreviver no campo minado que deixou para trás.
Mas o cerne da questão não está apenas na comunicação, está na falta de coragem para governar. Não basta aparecer para explicar que “vai levar tempo” enquanto o sistema agoniza sob listas de espera intermináveis, mobilidade recorde de médicos e enfermeiros, hospitais com corredores e lágrimas. O papel de ministra da Saúde exige algo mais: medidas de rutura, reforma estrutural, negociação incómoda, alavancas políticas que mexam com interesses instalados, e não meramente colocar pensos enquanto a ferida se alastra.
Porém, eis que, no meio deste vendaval, a ministra parece ter resolvido optar pela contenção orçamental e pelo discurso de “não gastar mais e gastar melhor”. O problema? O SNS não aguenta mais “contenção”. O SNS pede investimento, inovação, alianças público-privadas (bem negociadas), reorganização profunda. Em vez disso, assiste-se à promessa de estabilização, quando era necessária a revolução moderada.
Enquanto isso, os partidos à direita também alimentam o “quadro da responsabilização”. André Ventura aproveita para dizer que a ministra “é um ativo tóxico” do Governo, mas não aponta soluções. Já a Iniciativa Liberal reconhece que “não é a demissão que resolverá o problema, é a reforma do sistema”, e aponta precisamente para o silêncio estratégico e a hesitação da tutela em decidir.
E assim se perfila o cenário mais provável: se não houver um grande choque, se não for deflagrada uma reforma que mexa de facto na estrutura, então o único caminho para a ministra será a saída. Politicamente, será inevitável: o desgaste diário de “estar debaixo de fogo” acabará por destruir a legitimidade. Quem resiste a ser alvo permanente, sabendo que nada mudou, termina por perder política e pessoalmente.
Claro que o discurso oficial dirá que “o SNS continua público, universal e gratuito”, algo que nos habituámos a ouvir desde o século XX. Mas a verdade é que manter as aparências basta cada vez menos. A cidadania exige resultados. E se o Governo, liderado por Luís Montenegro, não assumiu ainda a reforma, se a ministra não entendeu que ser defensora do SNS significa também ser a defensora das mudanças que o salvem, envolvendo outros parceiros, então estamos no prelúdio de uma despedida anunciada.


