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Opinião: As angústias de uma tarde de sábado. Panegírico dos transportes públicos

03 de setembro às 10 h10
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Na retoma de um interregno que nada teve de “silly season”, nesta tarde cálida de sábado estou hesitante entre escrever sobre os fogos florestais ou sobre Gaza. Num assomo próximo da auto-censura, e achando cada um destes temas mais angustiante que o outro, receio o pior. Em vez de escrever uma crónica iria certamente regurgitar infâmias. E expeli-las.

Resolvi então sair um pouco e aclarar ideias. Nada melhor que uma deambulação pela cidade para reaprender a gostar do mundo. Meto uma mochila vazia às costas, talvez precise de comprar alguns mantimentos. Caminho durante um tempo que não quis calcular e detenho-me numa paragem de Metrobus. Nem um minuto esperei. Entro no autocarro e dou-me de caras com um conjunto de pessoas felizes, várias dezenas de pessoas felizes. De todas as idades, de todas as condições sociais, ora a filmar pela janela, ora a narrar aos mais próximos como estava a decorrer a experiência, sempre pelo telemóvel. Passamos por zonas onde se vislumbram perspetivas da cidade que nos tinham sido roubadas há três décadas atrás. Como arquiteto, dou comigo a imaginar cidade naqueles espaços cansados de ser traseiras abandonadas e descuidadas. Como sempre. Estou no meu direito, estou na minha praia, para usar a gíria fatela.

De entre toda aquela gente feliz, há os que saem no Parque Verde e outros que saem na Baixa. Saio na Portagem, claro, e vou deambular pela Baixa. Desde há três décadas, pelo menos, que acredito, e que escrevo, que este tipo de transporte público pode bem ser o princípio da reabilitação da Baixa. Nada melhor que o episódio de hoje para o comprovar. Saem, ainda assim, dezenas de pessoas que entram diretamente na “calçada”, como se dizia antigamente. Outras descem para a Praça Velha. Eu vou tomar um café no sítio de sempre, nunca me canso de lá ir, embora esteja cada vez mais turístico. Passeio e faço as compras dos mantimentos quotidianos na Baixa. Comprar bens de primeira necessidade na Baixa… há anos que não fazia isso. Dou por mim a acreditar que outras pessoas que saíram do autocarro farão o mesmo. Se calhar voltarão outras vezes. Mais tarde pode até mesmo tornar-se um hábito, quem sabe?

Está na altura de regressar, apanho um outro autocarro, dos de sempre, “dos antigos” por assim dizer. Também está cheio. Não com gente de todas as condições sociais, mas com gente de todas as idades, de todas as cores, de todos os sotaques e de todos os cabelos, lisos, encaracolados e encrespados, senhoras com véu e sem véu, algumas crianças, dois estudantes de capa e batina. Um autocarro cheio de conimbricenses, portanto. Sim, são de Coimbra, ou porque cá nasceram ou porque escolheram Coimbra para viver, para estudar, para trabalhar, ou por outra razão qualquer. Uma jovem entra numa paragem e pergunta, um pouco ansiosa, uma informação sobre o autocarro. O motorista responde com calma e bonomia: — Boa tarde. Ela acalmou, boa tarde. Dei comigo a pensar que, doravante, nunca mais se vai esquecer de dar as boas tardes.

Também estavam felizes, os passageiros deste autocarro dos SMTUC. Não era uma felicidade como a dos outros, efémera e imediata, de confronto com a surpresa e com o inesperado, mas era uma felicidade mais estruturada, mais intrínseca e mais resiliente. Estes portugueses de Coimbra, que são também os portugueses do futuro, são depois vilipendiados, agredidos e insultados pelos senhores do sistema, pelos tachistas que se insinuam como anti-sistema, tudo para lhes conseguir sugar os votos, como vampiros. E vão conseguir lá chegar. Isso mesmo, vão lá chegar com os votos daqueles que insultam e contra os quais vociferam, claro está. Parece difícil, mas não é difícil de entender. E viu-se agora bem recentemente, há poucos dias atrás. Não se coibiram de insultar o Presidente da República Portuguesa (ah, grande Marcelo! É assim mesmo) só para bajular e sair em defesa da “honra” (qual honra?) do presidente fantoche de uma gigantesca fábrica norte-americana, comandada pelos engenheiros do caos, como alguém tão bem os designou.

Pois… não se iludam, já estão a perceber que com toda esta fantástica deambulação pelos transportes públicos, não consegui ainda assim afastar a angústia. Mas tenho duas coisas como certas: a primeira é que ainda estou angustiado e a segunda é que continuo a não querer escrever nada de poético, nem de patético. Estou mesmo tentado a achar que escrever poesia depois de Gaza continuará a ser um gesto da mais pura barbaridade.

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